Os subúrbios ingleses do pós-guerra são-nos apresentados numa nova luz que nos desvenda uma cidade governada pelo crime e, sem o romantizar, a série segue o percurso à margem da lei de uma família britânica. E é surpreendentemente encantadora.

peaky blinders, temporada 1

Peaky Blinders. Disseram-me para ver esta série; achei o nome interessante, não o decorei. Um mês mais tarde estou a escrever sobre ela. Porque precisava de dizer algo sobre ela. Na realidade, estou a escrever sobre a primeira temporada e começo por dizer que, em apenas seis episódios, prendeu-me o coração de uma forma imensamente invulgar. Não sou fácil de cativar por um conjunto de episódios sobre uma história qualquer, até porque, no fundo, muitas vezes vemos televisão apenas para matar tempo. Mas decidir, deliberadamente, sentar-me em frente a um ecrã por sentir algo é raro. E refiro-me a sentir mais do que curiosidade, mero interesse, ou uma fruição quase contemplativa de uma obra de arte em movimento. A empatia é uma coisa curiosa, sobretudo quando sentida por pessoas que, efetivamente, não existem. Mas é isso que somos, não é verdade? Sentimento.

peaky blinders, temporada 1

Eu gosto de séries e filmes que envolvam crime, porque aprecio a outra face da moeda, a face desconhecida. Descobri isto quando decidi ver o Scarface só porque queria perceber o contexto da famosa frase “the eyes, chico, they never lie” e acabou por ser dos filmes que mais me surpreendeu pela positiva. Decidi ligar o ecrã desta vez porque a série aborda o crime e a primeira coisa que oiço no início de cada episódio é a Red Right Hand de Nick Cave. Banda sonora? Espetacular. Em nada contemporânea à própria série, que se passa por volta dos anos 20 do século passado, mas por isso é que é ainda mais espetacular.

peaky blinders, temporada 1

Há uma intensidade e um significado escolhido a dedo para todas as letras de todas as músicas. E a par disto, o estabelecimento de uma melodia icónica no início de cada episódio, acompanhada de algum momento bastante, diga-se, badass. É exemplo do que falo o protagonista caminhando despreocupadamente pelas ruas de Birmingham, dirigindo-se decididamente para algum problema como quem sabe que, seja o que for, resolve-se sempre com cigarros e uísque irlandês à mistura.

Há momentos previsíveis nesta série. Há momentos que sabemos que vão acontecer e acontecem exatamente da forma que achámos; e quase tendemos a pensar que aquelas cenas poderiam ter sido melhor escritas: aquele abraço e aquela frase são vulgares e não precisavam de estar ali… Mas, por outro lado, atribuem uma sensibilidade natural e uma autenticidade crua aos mundos internos de cada elemento do elenco. A série faz-nos sentir, porque nos dá a conhecer também os lados vulneráveis, teimosos e previsíveis das personagens que observamos. Lados que nos mostram que elas não são nenhuma obra de arte da escrita: são como pessoas e poderíam ser nós se decidíssemos tornar-nos um gangster do século passado.

peaky blinders, temporada 1

Costuma-se dizer que está tudo nos detalhes. Esta não é uma série brilhante nos seus detalhes de guião (embora esteja escrita de forma muito inteligente e cada episódio seja como ler um policial); é brilhante na forma como não deixa escapar nenhuma parte do mundo de cada personagem e o explora aos poucos, conquistando-nos sem nos forçar; brilhante nos detalhes musicais, nos pequenos sorrisos, olhares, o agarrar de um cigarro; e brilhante, também, no trabalho de câmara. A este nível, é uma das melhores séries que vi nos últimos tempos. Arrisco-me a dizer que vi em Peaky Blinders as melhores cenas alguma vez trabalhadas a nível de ângulos de câmara!

peaky blinders, temporada 1

A performance dos atores é majestosa. Cillian Murphy é como um íman para o espectador, Helen McCrory é uma intriga fascinante, Paul Anderson capta a nossa atenção subtilmente e, de forma gradual e quase sem nos apercebermos, tem-na por completo, mas a lista prolonga-se. Na minha opinião, uma boa série nunca se faz sem um protagonista interessante e atores que nos fazem verdadeiramente acreditar no que estamos a ver. E esta série tem ambos.

Um sentido de humor com o qual é impossível não sorrir e uma atmosfera leve e pesada em simultâneo, criada nas ruas lamacentas, barulhentas e pobres de Birmingham de 1919, através de cujos tijolos ainda soa a melodia trágica, essa canção da morte que é a guerra: esta é uma temporada de uma série (senão a série toda, veremos) que penso que aconselharei sempre.