Grace é o legado que temos de uma das maiores eternas pérolas do mundo da música. A voz sensível e as interpretações apaixonantes de Jeff Buckley asseguraram-no como um génio, apesar da sua morte precoce.

Sendo o único álbum completo de estúdio do artista, Grace foi um dos projetos mais importantes da década de 90 e mesmo da história da música. Com influências de Jazz, Folk, Rock progressivo, Blues e até Hard Rock, esta obra é inequivocamente singular pela sensibilidade e sentido poético das suas letras, pela força e delicadeza das interpretações de Buckley e pela originalidade e variedade na construção e evolução das canções.

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Grace é constituído por sete músicas originais e três covers, “Lilac Wine” (versão original de James Shelton), “Hallelujah” (de Leonard Cohen) e “Corpus Christi Carol” (de Benjamin Britten). Produzido por Andy Wallace, o projeto contou ainda com a participação na composição de algumas faixas de Gary Lucas, Michael Tigne, Mick Grondahl e Matt Johnson.

Os harmónicos com que o álbum se inicia em “Mojo Pin”, seguidos por um cantar murmurado, são um aviso prévio para os pormenores delicados e deliciosos que aí vêm, prontos para serem envoltos numa malha sonora mais poderosa, rica e intensa. Esta canção fala de dependência, ficando no ar o motivo dessa dependência e a que é que ela se deve e corresponde, devido à ambiguidade da letra. O tema desenvolve-se com naturalidade e mestria, com laivos de uma energia espontânea e rebelde, explorando a variação entre eles e a nuance mais sensível e melancólica da canção. A performance vocal do artista é, como em todo o álbum, absolutamente estrondosa.

A faixa homónima do disco, que foi o primeiro single do álbum, evolui progressivamente até chegar ao seu clímax, em que Buckley providencia à faixa um caráter mais agressivo e enérgico, com um falsete final seguro e sublime, simplesmente assombroso. Segundo o próprio artista, “Grace” fala sobre aceitar a própria morte tendo experienciado um verdadeiro amor.

“Last Goodbye” conta a história de um personagem que está a pôr um termo a um relacionamento por uma razão que não é revelada, mas que independentemente de tudo vai sempre guardar as memórias que teve com a sua parceira e sentir a falta dela, mais do que o que lhe é possível adivinhar. É um agradecimento à outra pessoa por ter dado mais valor à sua vida durante um tempo, enquanto aceita e constata que, no entanto, esse relacionamento terminou.

Segue-se “Lilac Wine” em tom ébrio e melancólico, que tem como base as palavras cantadas delicadamente acompanhadas por uns acordes de guitarra. Se este tema fosse interpretado vocalmente por outro qualquer cantor não teria metade do valor que tem, por ser uma demonstração notável da sensibilidade e subtileza do artista.

“So Real” substitui no álbum a marcante “Forget Her”, que foi especificamente afastada da edição original do álbum por Jeff, tendo sido controversamente escolhida como faixa de abertura, após a morte do artista, no segundo CD da reedição especial de Grace, a “Legacy Edition”. “So Real” surge então como um dos momentos mais loucos da obra, com uma instrumentalização extremamente requintada e crua ao mesmo tempo. Os falsetes notáveis de Buckley dão-lhe um caráter ainda mais louco e poderoso.

A versão do clássico “Hallelujah” de Leonard Cohen é uma demonstração fantástica do que se pode fazer com as palavras de outra pessoa, tornando-as tão nossas e únicas. Celebrizou-se como uma das melhores versões da canção, destacando-se pelo seu tom cristalino e puro, sendo um momento arrepiante e intimista. Uma voz, uma pessoa, um artista e o seu instrumento.

De seguida, encontra-se o momento mais alto do álbum, “Lover, You Should’ve Come Over”, uma faixa complexa, confusa, e simplesmente linda. É uma balada com influência progressiva, inspirada no fim da relação de Buckley com Rebecca Moore. A letra é absolutamente genial, com o artista a olhar para si mesmo como incapaz de fazer resultar qualquer relação de amor verdadeiro e com significado, dando cabo a uma reflexão sobre o seu envelhecimento não ser proporcional ao amadurecimento que lhe seria naturalmente adjacente. A frase “It’s never over” soa como que uma incapacidade de o cantor aceitar que aquela relação realmente acabou, agarrando-se à esperança de que de algum modo a sua amada possa voltar. A guitarra acústica balançando de um lado para o outro, envolta numa malha sonora riquíssima e super expressiva, com os solos de teclado e a melodia da voz cantada com requinte, elegância, aprumo e paixão, contribuem para o crescimento e força da canção.

De seguida, “Corpus Christi Carol” surge, então, como um toque cristalino, simples e puro, cantada de modo angelical. A faixa sobe ao céu junto do falsete singular de Buckley, que se faz acompanhar praticamente apenas pela guitarra, uma vez mais.

“Eternal Life” é o exato oposto da faixa anterior, sendo enérgica, viva, rebelde, com uns riffs do baixo espetacularmente desenvoltos, harmonizando de modo sublime com a guitarra ritmada que dá vida à música. O artista fala da efemeridade da vida, enquanto condena a violência, e segura-se na revolta que isso lhe causa, motivado pela raiva que guardava sobre o homem que matou Martin Luther King.

Finalizando com chave de ouro, “Dream Brother” foi escrita para sensibilizar um amigo que tencionava abandonar a namorada grávida. Aqui, Jeff alude claramente à sua história pessoal e ao facto de ter sido abandonado pelo pai, Tim Buckley, também ele um grande cantautor na sua época. “Don’t be like the one who made me so old, don’t be like the one who left behind his name, cause they’re waiting for you like I waited for mine, and nobody ever came”.

Este refrão repetido várias vezes surge em tom recriminatório, avisando assombrosamente o seu amigo acerca da visão ética que tem desta situação. É uma canção que aborda mais um universo sonoro, com influências até de música árabe, sendo superintensa e caótica, fiel à letra. Buckley estabelece uma relação com esta criança que ainda não nasceu, mas com quem se identifica por poder vir a viver uma situação parecida com a sua. É descrito o pânico de se sentir abandonado, a solidão e desespero da mulher que ficaria sozinha com uma responsabilidade que deveria ser de duas pessoas, enquanto o homem fugiria para uma outra relação sem sentido de solidariedade e responsabilidade.

Grace é a promessa de uma carreira brilhante que foi arruinada por um acidente trágico, sendo um álbum repleto de virtuosismo, brilhantismo, sensibilidade e unicidade. É uma viagem entre influências de diferentes géneros, uma obra intimista e cristalina com a energia do Rock alternativo da década de 90. E é ao mesmo tempo uma demonstração da melancolia e delicadeza de uma pessoa sensível e apaixonada, que foi também um dos maiores talentos que pisaram a Terra, vítima de uma efemeridade que ninguém adivinhava, surgindo no mundo da música e da arte como um breve suspiro divino da pureza caótica que é o ser humano.