O quarto álbum da banda bracarense reflete de forma literal e brilhante a máxima hedónica “sex, drugs & rock’n’ rol”. Mutantes S.21 mostra-nos o lado negro de algumas cidades mais conhecidas, através da utilização das mais variadas referências.

Originalmente formada em 1984, a banda contava com Joaquim Pinto no baixo, Miguel Pedro na guitarra e com a poderosa voz de Adolfo Luxúria Canibal. O tempo foi passando e a banda cresceu a um ritmo alucinante, com a entrada e saída de membros, enquanto os Mão Morta iam arrecadando prémios.

Numa altura em que já são conhecidas as músicas do seu novo álbum, relembramos um dos projetos da banda que andou esquecida por uns tempos e, em 1992, renasceu com o lançamento de Mutantes S.21, um projeto assumidamente conceptual que descreve uma viagem por várias cidades cantadas com uma perspetiva obscura, expondo situações relacionadas a crimes, drogas e sexo.

Créditos: Matilde Quintela

“Lisboa (Por Entre as Sombras E O Lixo)”, a primeira faixa, como não poderia deixar de ser, mostra-nos a capital portuguesa. Pintada por um consumidor de droga remete-nos através dos “olhos dilatados pelo assombro”, para um espaço escuro e lúgubre. Com a batida bem demarcada do início ao fim e com a voz rouca em estilo declamativo de Adolfo é passado um sentimento de incapacidade de resposta a sensações.

Segue-se “Amesterdão (Have Big Fun)”, que possui uma sonoridade mais suave relativamente à canção anterior. A letra porém é mais dura e transmite a imagem visual da cidade tal qual como todos pensamos nela, muitas bicicletas e a “Red Light”.

Seguimos rumo a “Budapeste (Sempre a Rock & Rollar)”, numa viagem desta vez feita num “Trabi”, “de bar em bar a aviar”. Contrasta com as faixas anteriores por ter uma vibe menos obscura, por ser mais ritmada e cantada, fugindo ao tom declamativo esperado.

“Barcelona (Encontrei-a na Plaza Real)” inicia dando grande destaque à guitarra e volta ao tom declamativo. Conta a história de alguém que se encontra em fuga por ter sido apanhado pela guarda civil a vender objetos roubados. Aliado a este crime surge a declamação bem marcada, o que dá a sensação de que estamos em fuga pela cidade durante todo um dia que termina na Gare Marítima “a ver o sol a nascer no Mediterrâneo”.

“Marraquexe (Pç. Das Moscas Mortas)” retrata um crime semelhante e à luz do de Barcelona, porém numa cidade mais vibrante e colorida.
Aqui o destaque vai para a voz arábica que apenas não é utilizada na última frase da canção. Esta estratégia, apesar de bem pensada para uma melhor visualização da área que se descreve, dificulta a compreensão do que é dito numa esmagadora parte da canção.

“Berlim (Morreu a Nove)” transporta-nos de imediato para o momento histórico da queda do Muro. É-nos dada uma descrição cinzenta e fria da cidade, acompanhada por teclas e pela subtileza da guitarra, que ganha força e destaque sempre que há uma pausa na declamação.

Segue-se “Paris” que nos faz lembrar os sonhos e o amor. Para os Mão Morta, esta é a cidade do “(Amour à Mort)”. Detentora de um ritmo particular e de partes declamatórias mais rápidas, é dado destaque ao espirito revolucionário do povo francês e relembrado o sangue derramado por decapitações. Em parte cantada em francês, é talvez a faixa que reúne mais referências culturais.

“Istambul (O Grito)” possui uma introdução diferente das demais pois transmite uma calma duvidosa. À medida que a música vai tocando, apercebemo-nos de uma aceleração rítmica que nos faz sentir como se algo fosse acontecer. A criação do suspense é acentuada com as pausas estratégicas a seguir a todos os “de repente” que escutamos. A temática aqui é duvidosa, tanto podemos assumir que se trata de um rapto como de tráfico de pessoas. No final é ouvido um grito penetrante de mulher, no entanto, a faixa acaba como começa, de forma calma e suave.

A nona e última canção do álbum é “Shambalah (O Reino da Luz)” que remete para a ideia do império escondido nas profundezas terrestres, envolto numa aura vermelha de mistério obscuro. É utilizada a guitarra de forma intrigante, que nos transporta para este “mundo oculto”, onde é percetível uma quebra para um Rock mais ritmado e vivo, e o som de gato distorcido é a deixa para o início da declamação por parte do vocalista, que termina com a repetição das palavras “a refletir perigosamente nas lâminas das facas ensanguentadas dos adolescentes”.

Mutantes S.21 é genial pela utilização impar e excecional do português e pelo caracter crítico subjacente. De enorme complexidade e de uma atenção ao detalhe fora de série, os artistas fazem-nos refletir sobre as realidades alternativas às normalmente retratadas. As descrições quase que a lembrar uma série criminal são intimidantes pela visualidade que conseguem transmitir, podendo ser visto como uma chamada de atenção: o mundo não é cor-de-rosa.