A nova série da Netflix, Boneca Russa, conta a história de Nadia, uma mulher atormentada por uma infância problemática, aspeto que apresenta consequências reais na sua vida, desde o egoísmo, à agressividade e à dificuldade em aceitar o compromisso. Após ser atropelada na festa do seu 36º aniversário, revive esse dia vezes e vezes sem conta, tendo sempre como ponto de partida uma forma diferente de morrer.
Atropelamento, queda de escadas e hipotermia são apenas alguns dos exemplos que fazem parte do ciclo de mortes e de retornos da personagem. Quem lê a sinopse da série pela primeira vez sente receio em visualizá-la. Qual o interesse em ver e rever sempre a mesma história num contexto exatamente idêntico? Porém, não há motivo para preocupação. A narrativa retoma sempre ao mesmo ponto: a casa de banho do apartamento de uma amiga de Nadia, mas desenrola-se de formas completamente distintas, acompanhando quer o crescimento, quer o maior ou menor entendimento da personagem relativamente à situação em que vive.
À medida que Nadia se apercebe das consequências que as suas atitudes provocam em si e nas outras pessoas, os espectadores têm acesso constante a novos lados da personagem, descobrindo, inclusive, mistérios do seu passado. Quando questiona o porquê de gostar tanto de estar na cozinha, a resposta – “Well, sustenance, safety, nutrition. All the things you were missing when you were little” – subentende uma infância com bastantes carências afetivas.
Muita atenção é dada à relação que Nadia tem consigo própria, à falta de capacidade em admitir os seus erros e as suas dificuldades, sendo que essa aptidão apenas surge sobre efeito de álcool ou aquando de uma situação de total desespero – “I’m the abyss”. E também à relação que estabelece com os outros: quando questionada pela amiga que lhe preparou a festa de aniversário “Are you having fun?”, Nadia nem reflete na escolha de palavras e afirma: “Fun is for suckers, Max!”, deixando a amiga ligeiramente triste.
De qualquer das formas, esta personalidade explosiva, o não pensar antes de agir, trás consigo um conjunto imenso de alívios cómicos. Estes alívios são extremamente necessários, uma vez que mortes passíveis de serem reais estão a ser retratadas, para além de outras temáticas sensíveis, como por exemplo, a homossexualidade, relações amorosas entre pessoas de idades consideravelmente distintas, traições, consumo de drogas e doenças mentais. Como a própria personagem afirma, “It’s my bad attitude that keeps me going.”
Durante todos os episódios, existe uma preocupação extrema com os detalhes visuais, desde a tipologia de movimento de câmara, que torna todas as passagens suaves, à decoração e às metáforas associadas a tudo o que vemos. Um dos exemplos destas metáforas é o facto de Nadia trabalhar com videojogos. Muitos dos jogos que conhecemos apresentam um ponto de partida e de retorno no caso de insucesso, como acontece com a casa de banho onde a personagem renasce sempre.
Para além disso, a porta de entrada no “jogo” apresenta um puxador em forma de pistola e uma estrutura aleatória composta por diversas cores que se assemelha a uma galáxia, representando a necessidade de partir em busca de conhecimento e o perigo que isso acarreta. Ademais, representa a aleatoriedade da vida. Vida essa que pode ser alterada apenas com uma pequena mudança de comportamento da nossa parte.
Após 8 episódios da série, percebemos que o constante renascimento de Nadia é acompanhado por uma música específica, Gotta Get Up de Harry Nilsson. Esta escolha não foi inocente, uma vez que esta canção reflete sobre uma mudança repentina (“We never thought it would end/ We never thought it’d grow cold, but now”) e a pressa em avisar todos aqueles que nos rodeiam dessa alteração na nossa vida (“I gotta let the people know I’m gonna be late”), mesmo que não resulte em nenhuma diferença.
Contudo, não é a única música escolhida a dedo. Após discutir com a sua amiga, Nadia decide refugiar-se no álcool e em drogas. Nesse momento, I Go To Sleep de Anika começa a tocar. A composição sonora fala sobre o refúgio nos sonhos, onde as memórias e desejos se tornam realidade. Neste caso, essas substâncias passam a ser o escape para os problemas e a solidão de Nadia (“When morning comes again / I have the loneliness you left me”).
Nadia, a personagem principal da série, é representada por Natasha Lyonne, uma atriz muito querida dos fãs de Orange Is The New Black. A atriz assume o papel com o maior rigor e as suas expressões faciais intensificam as situações e os sentimentos da personagem. Para além disso, contamos com um elenco de excelência – Charlie Barnett, conhecido pelo seu papel em Chicago Fire; Elizabeth Ashley, atriz catedrática, cuja última performance foi em Ocean’s 8; Yul Vazquez, participante no filme A-Team e Greta Lee da série Law & Order: Special Victims Unit.
Tal como as matrioskas, Boneca Russa permite uma desconstrução do ser, das personagem e dos espectadores. Sendo assim, quer estejamos à procura de algo que nos faça rir um pouco ou de um revisitar interior, esta é a série perfeita.
Título original: Russian Doll
Realização: Natasha Lyonne, Leslye Headland, Jamie Babbit
Argumento: Natasha Lyonne, Leslye Headland, Amy Poehler
Elenco: Natasha Lyonne, Greta Lee, Yul Vazquez, Charlie Barnett, Elizabeth Ashley
USA
2019