Os Capitão Fausto admitiram a sua mentira e mostraram que, contrariamente ao que tinham transmitido ao público, não têm os dias contados. Dia 15 deste mês lançaram, então, o quarto álbum de estúdio, A Invenção do Dia Claro.
Surgindo naturalmente como resultado da evolução sonora da banda, o disco aproxima-se mais do seu antecessor mais próximo, Capitão Fausto Têm os Dias Contados. No entanto, não deixa de ser possível sentir e identificar detalhes e opções a nível de composição mais caraterísticos dos seus dois primeiros álbuns, que caraterizam o período mais Rock e psicadélico do grupo lisboeta. Este processo de maturação da banda é particularmente interessante se tivermos em consideração a certa ingenuidade e jovialidade deste conjunto de canções, que escondem a seriedade das mensagens que se querem passar e a inteligência, sensibilidade e delicadeza com que se tratam estes temas.
A viagem ao Brasil que o quinteto português preconizou resultou em cerca de meia hora de um conjunto de oito canções apresentadas com requinte, boa disposição e sentido de humor, com laivos de alguma melancolia e marasmo. Faixas que falam do processo da aventura de autodescoberta e o descobrimento de pessoas, relações e problemas e soluções, imbuídas em arranjos musicais interessantes, criativos e originais. A riqueza dos instrumentos, como o baixo, guitarra, bateria, cordas, sopros, sintetizadores, cavaquinhos, pianos, entre outros, contribui para o caráter do álbum.
Construído com o cuidado de apresentar uma estética melódica e rítmica apelativa a uma primeira escuta, A Invenção do Dia Claro prima da particularidade de ser quase que pura e naturalmente prazeroso numa primeira análise. É enganadoramente simples de uma maneira muito bonita, dando espaço para novas descobertas nas revisitas que se possam fazer ao disco, sendo ainda capaz de as motivar.
O projeto abre em grande com um dos momentos altos do álbum, “Certeza”, curiosamente a maior canção entre as oito apresentadas, apesar de ter apenas quatro minutos e meio. Começando num embalo caraterístico do disco, a voz e o estilo particulares de Tomás Wallenstein são-nos apresentados sobre um suporte de teclados, arpejos ao piano e vocais de apoio quase psicadélicos, além de um conjunto de outros instrumentos harmoniosamente unidos. A canção desenvolve-se e ganha uma força maior quando, na segunda parte da faixa, uns sintetizadores marcantes, com a ajuda do baixo e do piano, lhe proporcionam uma nova vida e dão lugar a diálogos entre os sopros e as cordas que, à vez, protagonizam e gozam dos seus solos.
Segue-se então “Boa Memória”. Musicalmente menos arrojada e aventureira, fala com sentido de humor e ironia do lado boémio do “eu lírico”, que procura perder-se de tal modo nas suas “aventuras” que parte para elas com o intuito de nem ter como as lembrar depois, atribuindo aos seus amigos essa responsabilidade. Uma canção sobre o carnaval de cada um ao fim de semana, depois das obrigações da vida adulta.
O “Outro Lado” é dos momentos mais lindos do disco. A melancolia da melodia da voz é preciosamente acompanhada numa primeira fase apenas pelo piano, que nos dá uma série de arpejos que ficam sobre os acordes em staccato. Quando entram a guitarra, as teclas e a bateria, primeiramente introduzidos por duas notas ao baixo, vamos assistindo ao desenrolar de mais uma música excelente.
Deparamo-nos então com “Sempre Bem” que, ainda que desvalorize a tristeza do “sujeito poético” em virtude das desgraças dos outros, fá-lo de um modo tão estranhamente objetivo, que se faz sentir irónica e quase desacreditada de si própria, num plot twist artístico genial. Num ritmo frenético e vivo, o final da canção é dos momentos mais ricos do projeto a nível musical, sendo preparado com mestria pela voz ritmada a solfejar palavras curtas em contratempo, com tudo isto a acontecer em pouco mais de 30 segundos.
“Amor, a Nossa Vida” é uma balada romântica que é essencial ao álbum devido à brevidade do mesmo, apesar de não ser particularmente especial musicalmente falando. Mais uma letra inteligente onde o “eu poético” se admite como não sendo exatamente aquilo que a sua parceira pensa que ele é, curiosamente acabando com a frase “Não vou saber mudar” repetida várias vezes. Uma faixa que parece, portanto, falar da dificuldade de alguém se afirmar exatamente pelo que é a outra pessoa.
Mais bem-disposta e divertida, “Faço as Vontades” destoa assim da faixa anterior, acabando no entanto com uma reflexão introspetiva. Aqui, o “sujeito lírico” dirige-se à mãe, dando a entender que não se apercebeu de tudo o que estava a acontecer na sua relação amorosa com a personagem Sophie, e que o desfecho daquela situação específica acabou por não ser aquele que ele lhe podia reservar, visto que ela “não ficou pra ver”.
“Lentamente” proporciona mais um momento lírico atencioso, carinhoso e sensível. Surge no álbum como um momento bonito que, no entanto, se sente não tão cheio e forte como poderia ser desejado e como o próprio momento do projeto pediria, tendo em consideração as faixas anteriores. Os fraseados vivos dos arranjos às cordas, o conteúdo lírico da letra e as passagens mais apetrechadas e criativas do piano, são particularmente os fatores que mais se salientam.
Segue-se “Final”, a última do projeto, que é mais uma canção bonita que perde força pela segunda parte do disco menos original e arrojada. Exemplo disso neste mesmo tema são os breves fraseados de guitarra pouco criativos, que assumem um protagonismo maior que aquilo que propriamente mereceriam. É mais uma faixa para derreter o coração do ouvinte, vítima de um arranjo musical mais pobre, sem que, no entanto, deixe de haver espaço para alguns pormenores simples que não deixam de ser deliciosos por isso. Como, por exemplo, a maneira como a bateria guia com delicadeza a canção.
A Invenção do Dia Claro é, no geral, um bom álbum, com vários momentos de brilhantismo e também momentos menos marcantes. Faz-se valer da sua brevidade de um modo positivo, recheado de inteligência e delicadeza e envolto na sua maioria numa instrumentalização requintada e única. Porém, a primeira parte, que é mais rica e original, acaba por ofuscar a simplicidade da segunda, que não deixa de ser digna do seu encanto e beleza mas que depende demasiado da qualidade das letras.
Esta é uma das bandas mais interessantes do panorama musical português, particularmente da música alternativa, que ainda está para descobrir qual é exatamente o seu lugar neste limbo ténue entre o Pop Capitão Fausto e o Rock Capitão Fausto. É um grupo com todos os motivos para se esmerar na sua ambição, talento e criatividade, sem medo de se expandir além fronteiras, de modo a se assumir como uma das bandas mais importantes de sempre na música portuguesa.
A Invenção do Dia Claro: mais um passo na descoberta dos Capitães de Portugal
6/10
Álbum: A Invenção do Dia Claro
Banda: Capitão Fausto
Data de Lançamento: 15 de março de 2019
Editora: Sony Music Entertainment Portugal