A Mulher que Viveu Duas Vezes é Hitchcock, na criatividade, na genialidade e na perversidade. O filme do visionário cinematográfico é uma vitrina para o seu talento, mas também para dentro da sua própria mente que se revela de forma mais íntima nesta obra sobre os ecrãs.
Dentro da vitrina está a escultura, a obra trabalhada, a máscara de Tutankhamon para a qual olhamos hesitantes numa admiração que vem, também, de uma tentativa de compreensão. O enredo do filme é baseado na obra de Boileau-Narcejac “D’entre les morts”, mas é profundamente “Hitchcock” em todo o resto.
O célebre trabalho de câmara que distingue o realizador revela-se pioneiro mais uma vez, ao criar no espectador a ilusão de estar a cair num precipício infindável quando entra na mente da personagem principal que sofre de acrofobia (vertigens). Mas já antes sequer de termos contacto com qualquer personagem o magnetismo do filme estreia-se numa abertura hipnotizante, onde Hitchcock pretende fazer o que faz de melhor: perturbar a audiência, envolvê-la na história, e encantá-la.
Mais uma vez se torna evidente o fascínio do realizador pelos recantos da mente humana e das sensações reprimidas, desagradáveis, intensas e sufocantes que representa sempre nas suas personagens e explora claramente neste filme: o desejo, a obsessão, o fascínio, a culpa e a perversidade (lembremo-nos, por exemplo, do famoso Psycho).
A mulher, como é comum nos filmes de Hitchcock, aparece elegante, educada, frágil e comete um erro que a conduz à sua desgraça. Como todos sabemos, já se torna difícil não julgar o caráter de um artista pela sua obra, mas torna-se quase impossível quando o artista está tão intimamente relacionado com a obra. São conhecidos os infelizes relatos sobre a conduta controladora e até alegadamente abusiva de Hitchcock por trás das câmaras, sobretudo para com as mulheres que representavam os papéis principais nos seus filmes e, por isso, torna-se muito fácil ver na personagem principal deste filme (um homem que, ao perder a mulher que ama (ou pela qual é obcecado) e conhecer outra mulher com demasiadas parecenças à sua amada a força a ser e parecer-se com a mulher que perdeu) um pouco, ou muito, do próprio Hitchcock.
Mas, apesar da faceta infame, o autor é brilhante no seguinte aspeto deste filme, o qual dúvido que seja sem querer: Hitchcock faz o espectador simpatizar imensamente com as personagens na primeira parte do filme (com a mulher que acredita ser a reencarnação da sua bisavó e sofre ao tentar perceber o seu passado, e o polícia aposentado que sofre de vertigens e é contratado para a investigar), mas na segunda parte do filme, quando percebemos que absolutamente nada nesta história é aquilo que parece, a mulher inocente transforma-se numa criminosa e o polícia transforma-se num homem controlador, obcecado e até perverso a um ponto quase irreconhecível.
E Hitchcock é sublime na maneira como consegue transformar o amor em obsessão e mudar completamente o nosso ponto de vista: faz-nos acreditar que é amor se assim quiser, e mostra-nos o que demais intrínseco há na obsessão humana também, se assim quiser. Joga com os sentimentos do espectador com um talento único, brincando com a nossa inocência, manipulando a nossa atenção e até a nossa própria moralidade.
Outra inovação nesta película são as cores e as luzes, porque a sonoridade que em gigante parte contribui para o suspense está outra vez presente, mas a utilização de luzes e de tons que nos dão uma sensação quase de sonho, nevoeiro, aura sobrenatural são uma novidade.
É preciso uma atitude simultaneamente atenta e simultaneamente leve ao ver os filmes deste realizador: é preciso vê-los com uma mente ativa, que deteta os preconceitos da época e os analisa com capacidade crítica, mas é preciso uma mente simultaneamente passiva, que se deixa levar e guiar ao longo das histórias para tirar destas o que têm de melhor, e da técnica de Hitchcock o que é passível de admirar.
A Mulher que Viveu Duas Vezes é uma viagem, são várias histórias dentro de uma mesma história, todas entrelaçadas numa espiral de imprevisibilidade narrativa e ocasional previsibilidade que deriva da obrigatoriedade dramática de uma história assim.