Sinto que necessito de reformular o meu propósito de vida. Este documentário reduziu a minha dignidade a algo fofinho e a minha coragem tornou-se gira. Da próxima vez que receber uma nota de vinte da minha avó, controlarei a amplitude e expressividade do sorriso. Tenciono guardá-lo para um momento merecedor de tamanha demonstração de emoção: quando levantar um navio com a força dos meus próprios braços e uma ligeira flexão de joelhos.

free solo, 2018

Alex Honnold tornou-se a primeira pessoa a escalar sem cordas, qualquer tipo de equipamento de segurança (ou medo de morrer) o El Capitan, o monólito de granito em Yosemite, na Califórnia (EUA), com 910 metros de altura. Ora, traduzindo para os comedidos e maricas membros da raça humana, corresponde a fazer uma viagem de carro até ao Algarve sem dados móveis. Não será preciso ir tão longe, na zona de Famalicão alguns já estariam a entrar em hiperventilação, chegando a Coimbra não sentiam as pernas e em Setúbal já tinham entrado em coma à cerca de um quarto de hora. Chegando à receção do hotel, com free wi-fi, o som das notificações é intercalado com os batimentos cardíacos: de regresso à vida, recheada de futilidades e pobres sonhos.

free solo, 2018

Para além de insano, Alex é vegetariano. Vive como um nómada na sua carrinha, com duas peças de loiça e uma colher, optando por comer e beber diretamente da panela. É a namorada que lhe corta o cabelo e gosta particularmente de bermudas. Viaja por todo o mundo em busca de paredes que o desafiem. Talvez seja o reflexo de viver numa casa sem paredes, não sei bem… Se tivesse de pintar a cozinha de bege e arranjar a máquina de secar que pinga o chão da arrecadação, talvez não sentisse esse incessante descontentamento e deixasse as formações rochosas em paz.

freak solo

Para além de relatar com grande qualidade cinematográfica este feito inacreditavelmente singular, Free Solo mostra-nos também o enquadramento emocional e os antecedentes motivacionais do alpinista americano de 33 anos. Considero que houve, da parte da equipa de produção e direção (fotógrafo Jimmy Chin e a cineasta Elizabeth Chai Vasarhelyi), uma tentativa de encontrar o equilíbrio entre a altura do El Capitan e as profundezas do amor entre Alex e Sanni, o sentimento de conquista e o receio de falhar, a explosão de adrenalina e a paciência de todo o processo de recuperação de lesões, as mãos e os pés, as três horas e cinquenta e seis minutos de escalada e os oito anos de planeamento minucioso, o orgulho de viver e a inevitabilidade de morrer.

free solo, 2018

Alex é a representação da perseverança e disciplina associada à obsessão com a perfeição da performance. A escalada livre conjuga a incrível forma física, a armadura mental e o domínio técnico numa coreografia que, por sua vez, se movimenta segundo o ritmo da natureza. Trata-se de uma atividade de extremo risco, onde Alex encontra a fonte das suas emoções, posteriormente canalizadas para as suas relações do dia a dia.

free solo, 2018

O projeto em torno desta escalada tomou uma dimensão frágil. Levantaram-se questões éticas relativamente ao efeito que as câmaras poderiam ter na mentalidade e concentração de Alex, afetando a experiência ou pondo em risco a sua própria vida. No entanto, as extraordinárias imagens e os pormenorizados sons foram captados, com o aval do escalador, e partilhados com o mundo neste fantástico documentário da National Geographic. Entre essas imagens, temos o genuíno sorriso de Alex, diretamente para a câmara, ainda na ascensão ao topo, após ultrapassar um dos cinco pontos (mais) críticos do percurso.

Não poderia terminar sem partilhar convosco uma citação: “Nobody achieves anything great because they’re happy and cozy” (Honnold, Alex). Por isso, na eventualidade de estarem a pensar enrolar-se numa manta e sentar o rabo feliz e confortável no sofá a ver Free Solo, esqueçam! Peguem nas vossas bermudas e vão surfar ondas gigantes, descer cascatas de kayak, nadar com tubarões ou vão ao dentista!