Neste ambicioso álbum, a banda The Comet Is Coming traz o Jazz para o presente e embeleza este género musical com estéticas mais eletrónicas e psicadélicas. Esta escolha resulta num projeto tão místico como astral.

Sons of Kemet estabeleceu-se o ano passado como um dos grupos mais interessantes no panorama do Jazz com o álbum Your Queen is a Reptile, sendo que o seu saxofonista, Shabaka Hutchings, contribuiu muito para este sucesso. The Comet Is Coming continua a ascensão deste artista, sendo esta uma das três bandas que integra, definindo-se como a opção mais aberta a sonoridades eletrónicas, punk e psicadélicas. O trio londrino conta também com Dan Leavers no teclado e Max Hallett na bateria.

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Trust in The Lifeform Of The Deep Mystery apresenta-se como um lançamento muito mais denso, contando com um tempo de rodagem semelhante ao primeiro álbum do grupo, com cerca de 40 minutos. Porém, o facto de ter muito menos faixas indica uma maior atenção ao refinamento de cada uma destas peças, que vão desde os quatro aos oito minutos.

Traçando logo a identidade, “Because The End Is Really The Beginning” salienta a performance incrível no saxofone de Hutchings mas acompanha-a com sons sintetizados e prolongados, com uma presença minimalista da percussão. O resultado é uma faixa impactante, simples e grandiosa. Se o género Space Jazz existisse, provavelmente este seria o melhor exemplo desse estilo.

Caminhando ainda mais pelo lado artificial do Jazz, “Birth of Creation” é definida por teclados desorientadores, ondas sinuosas exuberantes e um maior destaque para a percussão, ao preço de uma contribuição menos impactante e distante do saxofone. Por trás da cortina, o instrumento de sopro lembra-nos que estamos a ouvir Jazz moderno, colaborando surpreendentemente bem com a pauta mais eletrónica.

Eis que “Summon The Fire” nos atinge com uma utopia ainda mais absurda. Leavers dá-nos tudo nuns teclados retirados do retrowave e o saxofone introduz-se apaixonante e dinâmico, tomando as rédeas da música e assumindo-se como a lâmina que corta as melodias sonhadoras e nostálgicas do sintetizador.

Com uns espetaculares oito minutos, “Blood Of The Past” soa precisamente como a odisseia psicadélica que nos é prometida pela guitarra suja no início da faixa. Um momento de spoken word de Kate Tempest, colocado precisamente a meio da canção, procura estabelecer um mundo utópico onde a sociedade se apresenta como mais unida e mais apreciativa da natureza, contrastando estes conceitos com obstáculos como o racismo e a negligência. Para fechar a faixa, o esforço do saxofone materializa-se ainda mais ao se estender até o além, enquanto a guitarra continua a entregar riffs carnudos, até se render, nos últimos minutos, deixando só a percussão a lutar contra o Jazz, até o silêncio dominar.

“Super Zodiac” continua a engalfinhar-nos neste mundo espacial e especial do qual o trio nos fez reféns. Varia suavemente entre ser Charlie Parker e Tame Impala, sem remotamente copiar nenhum dos dois.

“Astral Flying” começa com uma das transições mais polidas do projeto, entre esta e a faixa anterior. Este é um epílogo algo paranóico de teclados dos mais variados tipos, que se vão amontoando uns em cima dos outros, flutuando na sua presença.

A compensar por estes instantes mais pausados do álbum, “Timewave Zero” bombeia o coração do projeto com alguma adrenalina. Este momento de Jazz puro mostra que a banda não só sabe reinventar o conceito como também o sabe subjugar a um nível que muitos poucos grupos conseguem.

Contudo, a canção “Unity” corta imediatamente esta revitalização com uma presença minimalista e algo contemplativa. Uma abordagem que, mesmo ganhando compasso e forma quando os fantasmagóricos sintetizadores providenciam mais textura e personalidade, acaba por trazer algum atrito ao álbum.

Fechando esta grande ópera no que parece um amanhecer sónico, “The Universe Wakes Up” conclui o projeto, de maneira tão concisa e sólida como este começou. Denota-se a mestria do trio em fazer algo tão complexo e disperso, que prima ainda mais a identidade do álbum, sem necessidade de cacofonias dispendiosas na presença relativamente reduzida da faixa.

Trust In The Lifeform Of The Deep Mystery é um álbum tecnicamente simples, com a experimentação do lado eletrónico a nunca chegar a medidas muito radicais. A permutação de géneros e a variedade de contextos nos quais esta banda energética se insere contribui para momentos bastante memoráveis e únicos ao longo do álbum.

O protagonista principal é o saxofone de Hutchings, por dar direção e consistência ao projeto. O grupo nunca perde o seu foco nem nunca faz algo que não devia ter sido feito, conseguindo o seu próprio nicho e imprimindo um álbum que na sua maioria entrega potencialmente uma das melhores apostas daquilo que é o Jazz em 2019.