O Festival Eurovisão da Canção de 2019 comprovou, mais uma vez, que este evento não se interessa por questões políticas e que se decide focar apenas na música. A questão é: será a forma correta de agir no seio desta indústria no que toca a tópicos mais sensíveis?

Para quem não está atento à atualidade mundial, Israel e Palestina estão num conflito armado há décadas para tentar ocupar a região em que se insere a cidade de Jerusalém. Toda a controvérsia do festival deste ano começou quando a israelita Netta, a vencedora do concurso em 2018, em Portugal, disse no seu discurso após a vitória: “Na próxima vez, em Jerusalem”.

Foi essa frase claramente política e a decisão do governo israelita de tentar realizar a Eurovisão em Jerusalem – felizmente foi feita em Tel Aviv – que assombrou a edição deste ano. Levou artistas palestinianos, estrangeiros e ativistas a apelarem ao boicote do concurso por causa da ocupação militar israelita na Faixa de Gaza, a organização do evento a confiscar bandeiras da Palestina dos artistas presentes e a todo um sentimento de “vejam o nosso lado lindo e não se foquem muito no nosso lado negro” e de “olhem para todo este glitter e jogo de luzes e esqueçam a guerra a poucos quilómetros daqui”.

Uma das poucas mensagens políticas da noite foi, curiosamente, transmitida por Madonna. Tanta gente lhe pediu para boicotar o evento e não atuar na final, mas ela decidiu “eu vou e vou levar comigo uma mensagem política”. Assim, ela pegou no milhão de euros que recebeu para atuar e fez dois dançarinos vestirem-se com bandeiras de Israel e da Palestina e abraçarem-se. E, no fim da atuação, deixou uma mensagem bem clara: “Acordem”. Foi uma boa mensagem, pena o lip sync terrível da atuação.

Tendo em conta tudo isto, eu pergunto: qual a melhor forma de lidar com tópicos mais sensíveis no mundo da música? Ignorar ou tomar posições? Para mim, depende muito do contexto, mas acho que ignorar deve ser a última coisa que devemos fazer.

Dou um exemplo: R. Kelly. Para quem não viu o documentário “Surviving R. Kelly”, o ínfame cantor R&B, durante mais de uma década, abusou de menores. Em 2002, surgiu um vídeo em que aparece R. Kelly a urinar em cima de uma menor nua. O que aconteceu? Em 2008, o artista foi ilibado de todas as acusações. No entanto, o mais impressionante é: nesse período de seis anos, o artista bateu recordes de vendas.

É chocante ver como, mesmo após aparecer o tal vídeo e de ter sido acusado de pornografia infantil, milhões de pessoas continuaram a ouvir e a admirar R. Kelly. Ao menos, finalmente, nos últimos anos, muitas rádios e cidades não têm passado música nem recebido concertos de R. Kelly, mas esse boicote foi tarde demais. Quase uma década tarde demais.

Na minha opinião, não devemos ignorar a sombra negra que ronda um artista ou um evento. Não devemos ignorar os conflitos ou os escândalos, em prol de ‘boa música e espetáculo’. Não devemos deixar que artistas como R. Kelly ou países como Israel lucrem milhões, tendo em conta todas as ações terríveis e desumanas que cometeram. Devemos tomar posições. Por isso, como alerta Madonna, “acordem” e não se deixem enganar pelo glitter.