O novo filme de Gaspar Noé segue a linha provocante do cineasta franco-argentino, que nos confronta de novo com os cantos escondidos da sociedade, no limite da sua aparente estabilidade, onde tudo está à espera de ruir.

Tendo estreado em Portugal a 7 de Fevereiro, a nova longa metragem de Gaspar Noé é, em muitos aspetos, tangente aos seus anteriores trabalhos. Como já nos habituou, somos atirados novamente para uma realidade brutalmente crua, sem filtros que suavizem ou amenizem a aspereza de que a natureza humana é capaz. Mas se em trabalhos anteriores como Irreversible ou Enter the Void nos chega, de formas distintas, um sussurro do grito humano abafado pelo mundo de hoje, e que é trabalhado pelo autor com uma delicadeza inesperada face à brutalidade do conteúdo, em Climax essa centelha fica abafada pela pomposidade da produção, que tenta forçar demasiado o público.

climax, gaspar noé., 2019

Em Climax, tudo se passa numa festa de uma companhia de bailarinos, no final do seu último ensaio. Hospedados numa antiga escola no meio de uma floresta, é em pleno inverno que a catástrofe desperta, quando uma taça de sangria que todos partilham é misteriosamente aditivada com LSD por um dos bailarinos. É a partir deste momento que o descalabro irá estalar no interior do pavilhão, do qual ninguém pode fugir dado o gelo que se faz sentir lá fora. É de salientar que o argumento se baseia numa história verídica de 1996.

climax, gaspar noé., 2019

A narração de Climax é quase a de uma tragédia grega clássica: um lugar, uma noite, uma ação. Mas o desafio aos deuses, que era essencial para o drama dos helénicos, é aqui substituído pelo desafio à própria sanidade humana, ao controlo de cada indivíduo sobre os seus impulsos. Sob o efeito da droga, mais de vinte dançarinos perdem o controlo sobre essa fachada que os mantém alçados uns sobre os outros, seja por medo ou por indiferença. E é assim que Gaspar Noé, depois de uma introdução de quase uma hora, onde nos apresenta e nos faz afeiçoar às personagens, liberta o inferno na tela. Na ausência de restrições formais, é transversal a todos os bailarinos a passagem para outro estado de consciência. Mas enquanto uns se deleitam com a pista de dança, paraíso dos prazeres, outros são apanhados pela sua própria fragilidade, em corredores demoníacos dos quais não podem, espacial e mentalmente, escapar.

climax, gaspar noé., 2019

Toda a abordagem de Climax se centra numa alucinação coletiva, onde há pouco espaço para moralidade. O que sobressai na película é a forma como Gaspar Noé nos consegue levar até ao pesadelo em que se encontram as personagens e fazer sentir em quem observa a sensação inquietante de estar presente na calamidade. Por isso mesmo a câmara é como um objeto voador que percorre todo o recinto, como um espectro sem rumo. Todos os minutos finais do filme, quando o delírio intensifica, são filmados ao contrário, onde vemos corpos desconexos abandonados ao prazer e ao sacrifício, sempre iluminados pela luz vermelha, que é preponderante no cinema de Noé.

climax, gaspar noé., 2019

No entanto, se a fotografia é surpreendente e hipnotizante, o ritmo do filme deixa muito a desejar. Se é ou não propositada a ausência de um climax num filme assim intitulado, o choque das filmagens é a partir de certo ponto substituído pelo aborrecimento. As cenas tornam-se expectáveis e desinteressantes, sem variações de ritmo nem intensidade variável. É interessante o clima que Gaspar Noé consegue criar, mas o extremo da situação é extensivo e torna-se, infelizmente, monótono, perdendo a tensão que seria suposto criar.

Gaspar Noé afirmou em entrevista, que ficou em certa parte desiludido que na estreia de Climax apenas 6 pessoas tenham abandonado a sala, quando a taxa de permanência em filmes anteriores foi muito menor, o que não é de estranhar dada a brutalidade das suas narrações. Mas em Climax faltou um choque verdadeiro, porque nos conformamos com um clima inconformável. Por isso mesmo devo admitir que este seria o único filme de Gaspar Noé em que eu abandonaria a sala, não por desdém, mas por aborrecimento.