O álbum The Colour of Spring é o ponto de viragem entre as duas fases da música da banda inglesa Talk Talk. Orgânico, poético, dançante e íntimo, foi um álbum marcante na década de 80, influenciando grupos e artistas, ao mesmo tempo que encantava o público com as melodias chamativas e os ritmos contagiantes.

Acho conveniente lembrar, no entanto, que é triste que tantas vezes os artistas marcantes e pioneiros sejam apenas lembrados e devidamente valorizados depois de deixarem de estar connosco. O que desde logo significa que estamos a valorizar o legado que eles nos deixaram, muito mais do que os estamos a valorizar a eles. Mas mais triste ainda que isso é quando esses artistas desaparecem de vez e nem aí a arte que nos reservaram é alvo do devido destaque. E o caso recente de Mark Hollis, vocalista e compositor dos Talk Talk, que faleceu em fevereiro deste ano, é exemplo disso mesmo.

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Não faria sentido falar do insucesso comercial da banda, uma vez que isso nem é, de todo, um facto verídico. A carreira do grupo foi, na verdade, bem recebida pelo público, especialmente se atendermos à evolução que preconizaram e o experimentalismo cada vez mais evidente, até ao ponto de ser isso a base da música que foram desenvolvendo.

Esta evolução do Pop oitentista até à música puramente minimalista e experimental foi algo progressivo e muito interessante de destacar. A cada álbum, este caminho tornava-se mais e mais marcado e claro. The Colour of Spring é exatamente o terceiro de uma discografia de cinco álbuns. E é claramente o “ponto rebuçado” entre os dois mundos.

Com influências jazzísticas e um groove contagioso, a essência Pop de cada canção está repleta de opções minimalistas e detalhes experimentais. A faixa “Chameleon Day” é a afirmação clara deste lado menos imediato que viria a ser ainda mais explorado no futuro, afastando por completo o conceito mais acessível e catchy.

A nível de letras, The Colour of Spring é marcado por mensagens curtas, simples e fortes, expressas com um alguma positividade e esperança, mas envoltas por uma névoa de sentimentos complexos e visões críticas e negras do que está à nossa volta. A primeira canção é, desde logo, um exemplo ilustrativo disto mesmo.

“Hapiness Is Easy” quando acreditamos em tudo o que nos dizem sem sermos capazes de pensar por nós mesmos. Neste tema, em que ficamos com esta falsa positividade nos ouvidos, um coro de crianças manifesta-se como representação desta manipulação de que somos alvo, nomeadamente por parte da igreja. Um refrão forte que fica no ouvido, e uma música cheia de pinceladas de classe, inteligência e groove. Convém, desde já, destacar o trabalho do baixo (que é uma constante durante todo o disco).

“I Don’t Believe In You” é um dos pontos altos do álbum, talvez até a melhor canção. Hipnótica e intensa, o arranjo acústico do piano, teclas e guitarra parecem ser fraturados e colados na música exatamente quando são necessários. A guitarra elétrica angustiante rasgando o tema, como que marcando a sua posição. “Any way you say it / The charade goes on / But your eyes / won’t see it / It’s the same old song / ‘I don’t believe you’”. Simplesmente brilhante. Um dos casamentos mais perfeitos entre música e letra que me vem à memória.

“Life’s What You Make It” é o maior single do disco e tornou-se numa das canções mais conhecidas da banda. A mensagem é simples, e a música é acessível e imediata, sem ser de maneira nenhuma marcante ou arrojada no conceito global do projeto.

“April 5th” é, juntamente com “Chameleon Day”, um presságio daquilo que seria a fase mais etérea e experimentalista do grupo. Apesar de, a meu ver, não ser tão bem conseguida como a sua congénere, especialmente por ser demasiado extensa, tendo em conta a forma como se desenvolve e o facto de estar muito presa a si própria e àquilo que é a sua base, musicalmente falando. Não deixa de ser um momento íntimo muito interessante e quente.

“Living In Another World” é mais um dos pontos altos do álbum. Extremamente bem desenvolvida, cada fase da canção surge com força e intensidade e pronta a fazer a diferença e orgulhosa do seu protagonismo. Uma faixa sobre uma relação unilateral, ou a incapacidade de ultrapassar uma relação falhada. Cheia de energia, não deixa ninguém indiferente. “God only knows what kind of tale you’d tell (Forget) / Living in another world to you”.

Segue-se “Give It Up” e voltamos a basear uma canção no groove do baixo e da batida. Certamente de estrutura simples, a última música da primeira fase dos Talk Talk. Mais uma mensagem curta e forte para manter no ouvido, dizendo para abandonar os preconceitos mais céticos.

“Chameleon Day” é importantíssima na discografia da banda. Um ambiente cristalino, puro e negro ao mesmo tempo. Uma canção despida e nua, segura na simplicidade de umas notas soltas ao piano e de uma interpretação vocal única. É experimental, etérea e íntima, e os sopros e as cordas surgem como uma prolongação do ambiente já explorado, envolvendo o ouvinte. A mudança de tonalidade no fim, com influências claras de música contemporânea e num espírito avant-garde, exploram num cenário acústico e mais cru aquilo que o Post-Rock traria ao espectro musical europeu no fim dos anos 80 e princípio dos 90. Absolutamente mágico.

“Time It’s Time” é um final fantástico. Voltamos a uma batida constante com várias fases e um coro deslumbrante. Pojante e positiva, desenrola-se com naturalidade de forma arrojada e chamativa ao mesmo tempo. As flautas entoam uma melodia constante até ao fim da canção, como que saltando e dançando em frente dos nossos olhos num desfecho belíssimo de um grande álbum, numa canção sobre seguir em frente.

E os Talk Talk não tiveram medo de seguir em frente e explorar novos caminhos. E, ainda que quatro dos cinco álbuns sejam fantásticos (apenas o primeiro não é tão interessante e bem conseguido), este parece-me compilar o melhor de dois mundos, sendo todo ele um mundo entre dois mundos.

Progressivo, arrojado, experimentalista, variado, inteligente, dançante e surpreendentemente cativante, The Colour of Spring consiste em cerca de 45 minutos bem passados e inesquecíveis para quem se dignar a prestar-lhe atenção e a encontrar o seu valor. Com uma produção fantástica, muita criatividade e sentido estético, foi já tido publicamente como grande influência de inúmeros artistas. E a sua marca não será esquecida por aqueles que forem capazes de ver além do que de mais imediato há no álbum.