A quinta temporada da série de ficção científica Black Mirror conta com três episódios independentes. No entanto, todos convergem por criticar o mundo digital. Relações comprometidas por um jogo inovador, uma empresa tecnológica sob ameaça e uma vida posta em risco pela ganância.

No seu 38º aniversário, Danny reencontra o seu melhor amigo da faculdade, Karl. Por um lado, temos um homem de família -“I thank God I don’t have to be out there on the dating scene” -, o rei do churrasco, já com o joelho enferrujado. Por outro, um homem de negócios que ainda não encontrou a pessoa certa, o rei das festas e do convívio, aquele que se sente obrigado a fazer 50 flexões por dia “to keep up with those younger dudes”. Devido a apresentarem vidas completamente distintas, a convivência entre os dois foi diminuindo. A prenda de Karl para Danny surge como uma solução para a aumentar – um jogo de realidade virtual, uma versão melhorada de Striking Vipers, jogo inspirado em Tekken.

black mirror, 2019

No jogo Striking Vipers X, cada um dos jogadores é representado por um avatar à sua escolha e utiliza uns headsets futurísticos que permitem aos participantes ficarem completamente imersos no mundo virtual, incluindo a perceção de sensações físicas – “the game emulates all physical sensations”. Seguindo a tradição, Karl escolhe a lutadora feminina, Roxanne, e Danny assume o papel do lutador masculino, Lance. Apesar de ser um jogo de combate e os jogadores se assumirem heterossexuais, rapidamente se passa de luta/violência à exploração de uma relação sexual/romântica. A negação da possibilidade de aquilo estar a acontecer aliada ao desejo crescente de reencontro leva a um constante desprendimento do mundo real. Após a mulher de Danny descobrir o que estava a acontecer, o casal tomou uma decisão contestável – no dia de aniversário de Danny, ele pode jogar com o seu amigo e a sua mulher pode ter relações reais com outros homens.

black mirror, 2019

Aquando das cenas de jogo, conseguimos perceber uma ótima escolha de localização, locais diversificados que correspondem à transposição dos cenários do jogo tradicional para a “realidade” – templo Kinkaku-Ji do Brasil; praia do Éden localizada no município de Guarujá, São Paulo, etc. -; a aplicação de efeitos especiais para dar mais realismo aos momentos de luta e a réplica dos avatares. Ainda enquanto alunos universitários, Danny e Lance jogam Striking Vipers, onde temos o primeiro relance das personagens desenhadas: Roxanne – cabelo loiro, curto e com franja; vestimenta vermelha e decotada; proteção para os pulsos – e Lance – cabelo castanho, músculos pronunciados, roupa escura decotada. Apesar de existirem algumas variações consoante o local onde se encontram, a caracterização das personagens é muito bem executada.

Apesar de à primeira vista não parecer, este episódio toca em diversos aspetos dignos de reflexão. De um modo geral, leva os espectadores a questionar-se sobre a inovação tecnológica, sobre a constante necessidade de progredir no mundo virtual – será assim tão necessário? Será que o mundo digital pode ser um porto seguro? Optando por ele, quanto da realidade vamos perder?. Aliado às possíveis consequências de utilização digital pode-se questionar: um encontro sexual ou romântico no mundo digital pode ser considerado infidelidade? A discussão sobre o que é ou não trair prevalece ao longo dos anos, baseada na classificação de diversos comportamentos – relações sexuais, saídas, troca de mensagens -, agora apresenta uma dificuldade acrescida.

black mirror, 2019

Além do imediato, o primeiro episódio explora a monotonia dos relacionamentos, aborda-a como um motivo possível para que haja um término. Esta invariabilidade reflete-se na realização de tarefas quotidianas sem qualquer tipo de vontade – “Family life? Shit, I find it boring” – e no modo como o casal interage entre si – “You don’t touch me anymore. You don’t even kiss me. There is none of the small stuff”. Além disso, este episódio não tem medo de demonstrar a realidade de se ser mãe – o andar constantemente em cima dos filhos para se certificar que nada de mal acontece, quando acontece, o ter de limpar as consequências – e toca subtilmente na temática da ecologia – “Macaroo found a shoe and put it in the tree. Macaroo’s got no respect for his environment”.

O segundo episódio da temporada chama-se Smithereens e conta a história de um jovem adulto (Chris) que devido a uma aplicação de telemóvel, com esse mesmo nome, teve um acidente que levou à morte da sua mulher. Apesar de se sentir culpado, crê que existe uma entidade superior, o dono da empresa da aplicação (Billy), que deveria ficar a par da situação – “I heard you make these things that way. Addictive. Well, job done. Bit of user feedback for you there. Maybe factor that into your next update”. Sendo assim, aproveita-se da sua condição de taxista para se aproximar de Billy. No entanto, o seu plano sofre alguns percalços e este passa a deter um refém. Da mesma forma que Chris perde o controlo da situação, explora-se o modo como o conceito de rentabilização de uma empresa, tentando tornar um produto cada vez mais aditivo, também pode levar a um descontrolo empresarial total, onde o dono da empresa aparenta ter menos poder do que o resto dos constituintes, onde se ditam regras sob ele e não o contrário – “It was one thing when I started it and then it just became this whole other fucking thing”.

Além de criticar a ganância de determinadas empresas, o episódio não desculpabiliza o resto da população que cada vez mais observa violência/injustiças através dos seus ecrãs e consegue seguir com os seus dias como se nada fosse. Para além disso, explora o sentimento de perda e, comicamente, a tentativa de utilização de métodos pouco tradicionais para manipular o comportamento humano. Nos primeiros cinco minutos da série surge uma cena de autoajuda, onde uma mãe, cuja filha se suicidou 18 meses antes, procura respostas – “was it over some boy or her course or the state of the world or me?” -, demonstrando que ainda existem pessoas interessadas em realmente perceber o mundo. No entanto, corresponde a uma realidade assustadora, uma vez que fica claro que apenas pessoas que já passaram por situações complicadas sentem essa necessidade. Por sua vez, durante a cena de sequestro, Chris é deixado constantemente a ouvir músicas calmas, a “Stressbuster playlist”, com músicas como – Can’t Take My Eyes Off You, Turn Around, Where Love Lives, Can’t Fight This Feeling, Long Train Running.

black mirror, 2019

O terceiro episódio da temporada conta com a participação de Miley Cyrus enquanto Ashley O., artista pop, adorada pelo público, controlada pela sua manager. Apesar de mencionar mecanismos de controlo impensáveis – automedicação, manipulação psicológica e uso excessivo da veia criativa – , há quem diga assemelhar-se à vida de Miley Cyrus versus Hannah Montana. Sendo assim, conseguimos notar uma clara distinção entre a personagem criada e a pessoa real. Por um lado, uma miúda civilizada, doce, que ama cantar músicas de empoderamento com o fim de motivar o seu público a ser a melhor versão de si – “I’m stoked on ambition and verve / I’m gonna get what I deserve / So full of ambition and verve / I’m gonna get what I deserve”. Por outro, uma rapariga que diz asneiras, que adora rock e transmitir os seus verdadeiros sentimentos através das suas letras, quer sejam positivos ou negativos – “Feel the hollowness / Inside of your heart / Everything right where / It belongs”.

De um modo geral, esta temporada de Black Mirror mostra-se mais simples. Contudo, não simplória. Apesar do primeiro episódio ser uma realidade estranha, todos os episódios têm um foco – demonstrar como a tecnologia está/pode evoluir e as consequências que essa evolução tem na vida quotidiana. Aos poucos e poucos, aproveita para deixar algumas mensagens subliminares. Consegue cumprir os seus objetivos sem grandes fogos de artifícios, uma capacidade de louvar.