24 anos depois e a sala de cinema está cheia de miúdos acompanhados pelos pais e miúdos com carta de condução acompanhados de amigos que são casados e já pensam em ter filhos. Uma audiência heterogénea que vibra em momentos diferentes, com um leque de intensidade que varia entre o focinho e a cauda do Slinky.

Senti um certo desconforto, confesso. O olhar do miúdo, sentado num daqueles banquinhos tipo bidé, sem tocar com os pés no chão, quando entrei com um barril de pipocas e me sentei na fila D, lugar 6, mesmo à frente dele. Fui deslizando discretamente pelo assento para encolher o meu baço metro e setenta senão o inovador formato 2.39:1 ficaria reduzido a um jogo de ténis com um poste de eletricidade pobremente posicionado.

Os brinquedos, já por nós apropriados, continuam a trazer alegria e humor, mas de uma forma mais requintada, agora com a contratação de novas personagens. Talvez devido ao facto de ser mais velha, comparando com os anteriores lançamentos, ri-me durante a grande maioria do filme. O argumento estava recheado de pequenas jóias humorísticas, não apenas nas falas das personagens, mas nos silêncios, na banda sonora, nas quebras de ritmo, expressões e referências culturais.

Toy Story 4

A luz e a cor elevaram o filme à profundeza dos sonhos. O candeeiro de Bo Peep ganhou visibilidade, multiplicou-se e rasgou o padrão cromático dos anteriores filmes. Por sua vez, as próprias personagens foram banhadas de realidade e perfumadas de detalhe. O reflexo da luz no rosto de porcelana de Bo Peep, o cabelo de Gabby Gabby, os dóceis olhos de Bonnie, o pêlo de Ducky&Bunny ou as costuras de Woody revelaram a maturação tecnológica desenvolvida pela Pixar ao longo dos anos.

Gostei. Gostei muito. Penso que, ao contrário do que seria de esperar, este “último” Toy Story (daqui a 10 anos falamos…) surpreendeu. Não se limitou a fechar o círculo emocional da história, mas a introduzir uma nova mentalidade, que contraria toda a crua essência destes filmes. Woody, que assume uma vez mais o protagonismo, vê os valores que defende em confronto: a lealdade associada ao compromisso de pertencer a uma criança e a liberdade que o amor lhe proporciona.

SPOILER ALERT: Toy Story 4 é o grito do Ipiranga de Woody. Rompe com o esqueleto de toda a história: a ideia de que o brinquedo vive por e para alimentar a imaginação de uma criança. Ser brinquedo ganha, pela primeira vez, voz. Sim, eu sei que eles falam, mas refiro-me à voz interior, aquela que nos sussurra o que fazer, que alimenta o carácter e que transforma o mundo interior e exterior. Ser brinquedo é intrinsecamente suficiente, ganhado assim um novo propósito.

Toy Story 4

Gostei do novo conceito de “brinquedo perdido”, que não pertence a ninguém para além dele próprio e que não busca o vínculo emocional com uma criança, mas a felicidade momentânea esboçada no sorriso de uma criança desconhecida, com mãos pegajosas, com quem nunca mais brincará. Bo é a alma do movimento, representa a auto-valorização, o desejo pelo desconhecido e a atitude de emancipação.

A minha voz interior disse-me que ia ser tolerável… um pouco nostálgico talvez, mas aceitável. Enganou-se. Foi espontâneo, incongruente e harmonioso. Toy Story 4 superou as expectativas, desafiou a gravidade e borratou na bota de Woody o nome “Bonnie”.

Notas para a posteridade: Deu-me a impressão que a única fala de Bonnie é “Onde está o Forky?”. Se eu fosse a Disney, investia numa edição especial “Onde está o Wally? E já que estão com a mão na massa, procurem o Forky também!”. Seria um sucesso!

Outra questão que merece referência é o facto de o Forky não ser um “fork” (garfo) mas sim um “spork” (colher garfo). Seguindo a lógica de atribuição de nomes às personagens, o Forky deveria chamar-se Sporky. Não deixaria de ser lixo (outra ideia inovadora da sequela) mas pelo menos teria um nome condigno com a sua personalidade.