Há guiões que seriam difíceis de realizar… Guiões em que os figurantes fossem o motor do enredo seriam difíceis de realizar. Ainda mais se os personagens principais não entrassem na ação. E se todo o filme se passasse na mesma sala? Quase impossível de realizar… Bem, Hitchcock fê-lo em A Janela Indiscreta. E, já agora, fê-lo de forma sublime.

A qualidade do cinema de Alfred Hitchcock é, para qualquer amante da sétima arte, de uma amplitude apavorante. O mestre do crime, imortalizado por títulos como Psycho e Vertigo, mais do que influenciou gerações de realizadores. Criou toda uma forma de usar a tela que nos cola à cadeira, nos tira o ar e nos faz inevitavelmente cair na tentação de adivinhar em detalhe o rumo do enredo. Tudo isto apenas para destruir o nosso raciocínio a cada passo, e nos pôr a duvidar, na verdade, de quase tudo o que achávamos certo.

A Janela Indiscreta

A Janela Indiscreta, produzido pela Universal Studios em 1954 conta-nos a história inicialmente aborrecida de L.B. Jeffries. “Jeff” ( James Stewart) é um fotojornalista, apaixonado pela adrenalina de uma vida ambulante com a máquina ao pescoço. Ao tirar uma foto arriscada, Jeff sofre um terrível acidente e acaba afundado no tédio do seu apartamento durante o recobro.

No entanto, como não poderia deixar de ser, para um olho atento tudo se mexe. Jeff começa a ganhar, nos meses de recuperação, uma estranha obsessão pela vida dos vizinhos. Esse estranho hábito ganha novas proporções quando Jeff se apercebe dos hábitos estranhos da vizinhança, das intrigas, das festas, dos visitantes noturnos, das paixões, das zangas e, mais importante de tudo, do crime. Mas, se as vistas enganam, as perspetivas também. O protagonista é arrastado para a suspeita de um homicídio no prédio em frente, na companhia da socialite Lisa Freemont. Esta última ganha todo o seu verniz pelo talento de uma espantosamente bela interpretação de Grace Kelly.

A Janela Indiscreta

Como é claro, nada na cinematografia de Alfred Hitchcock é o que parece. O filme arrasta-nos, tal como os personagens, para a tentativa desesperada de entender as poucas pistas que nos vão sendo deixados pelo caminho. A vertente de thriller é, de facto, laboriosamente bem pensada.

Também não nos é possível deixar passar a crítica aguçada que Hitchcock deixa a todos nós. Como diz Stella (Thelma Ritter), enfermeira de Jeff, “tornamo-nos uma sociedade de voyeurs”. E, ironicamente, como tantas vezes acontece, ela afirma isto enquanto se deleita também com o quotidiano da vida alheia, pela janela de Jeff. O mais engraçado são as conexões entre as vidas dos vizinhos. Estão todos silenciosamente conectados, presos numa mesma colmeia, semi alheios uns dos outros.

A Janela Indiscreta é um dos poucos filmes com a qualidade de nos manter colados a todos os movimentos do enredo. Isto apesar de se suster apenas na dinâmica dos diálogos e na simplicidade de uma câmara constantemente basculante entre o interior e o exterior de um apartamento. No fundo, é um filme emocionante e divertido; pedir mais seria estragar tudo.