Lingua Ignota, projeto musical da artista Kristin Hayter – compositora americana de neoclássico dark wave, noise e industrial – lança o seu terceiro álbum CALIGULA. Neste projeto retrata, de forma mais abrasiva e infernal, a tortura emocional e física de uma relação abusiva.

Kristin usa a sua música como uma mensagem sobre as suas experiências de abuso doméstico e, ao mesmo tempo, como forma de inspiração e apoio a pessoas que passaram – ou que estão a passar – pelo mesmo. Ela descreve as suas músicas como “hinos das vítimas”.

Este álbum conceptual de 11 faixas contém momentos que, por um lado, relembram músicas de Black Metal – com instrumentais pesados e vocais animalescos – e, também, uma imponente e emocional ópera gótica. Podemos descrever CALIGULA, de forma geral, como uma experiência caótica, atormentada, tortuosa, angustiante, mas também de renovação espiritual, de liberdade e religiosa.

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CALIGULA inicia-se com “FAITHFUL SERVANT FRIEND OF CHRIST”, uma faixa introdutória que marca o tom do resto do projeto. Instrumentalmente, a música está recheada de extensas e assombrosas cordas musicais, com elementos de drone e música clássica. Os vocais de Kristin equiparam-se a uma cerimónia religiosa que nos deixa hipnotizados, ao longo dos quase cinco minutos que passam sem darmos conta, contudo ansiosos pelo que dali virá. Nesta faixa denotamos as primeiras das referências ao Cristianismo que se espalham pelo resto do álbum: “Most glorious and holy light / Faithful servant and friend of Christ”.

“DO YOU DOUBT ME TRAITOR”, a segunda faixa, é das mais marcantes deste projeto. Começa quase como uma soundtrack de um thriller de terror, com uma leve melodia de piano e os vocais assombrosos de Kristin que carregam os primeiros minutos da música. O refrão “Satan, Satan / Satan, get beside me / Satan, Satan / Satan, fortify me” é dos mais arrepiantes do disco.

Como um vidro a partir, a música transforma-se numa “parede” perturbante de Noise Industrial com gritos angustiantes de Kristin – “I don’t eat, I don’t sleep” – acompanhada por um instrumental que se equipara aos teus piores pesadelos: preso num quarto, a tua mente a consumir-se a si própria. Esta faixa termina com os vocais assombrosos, sobrepostos um no outro, que causam um ambiente constante de “pele de galinha”, com um persistente tremor do baixo no fundo.

A terceira faixa, “BUTCHER OF THE WORLD” demonstra, mais uma vez, o poder infernal dos vocais de Lingua Ignota, cobertos por um instrumental caótico e sem dó – como se estivéssemos à frente de um motor de avião – que cai sobre si mesmo numa espécie de autodestruição musical. A faixa “acalma” na parte final, com a mudança dos vocais para um quase coro de igreja, com violinos e órgãos a tocarem no fundo. O sentimento de vingança e raiva tem uma presença abundante ao longo da música, mas também de relutância em rejeitar quem outrora amava “He strikes me down / Even as I make prayer for him”.

Em “MAY FAILURE BE YOUR NOOSE” temos uma melodia do piano calma e solene que encobre, em contraposição, um dos refrões mais amargos do álbum – “Who will love you if I don’t? / Who will fuck you if I won’t?”. À medida que a faixa prossegue, as letras ficam cada vez mais mórbidas, tal como o instrumental, que se transforma em baixos distorcidos e repletos de reverberação. Os instantes mais caóticos desta faixa são comparáveis a músicas dos The Body – banda de metal experimental – com gritos demoníacos de fundo, acompanhada por uma percussão lenta, mas pesada, e pelos cânticos melodramáticos de Kristin. Sem dúvida, um dos momentos mais angustiantes e soberbos do álbum.

A este ponto, CALIGULA apresenta-nos uma balada com “FRAGRANT IS MY MANY FLOWER’D CROWN”. A parte que se destaca desta faixa é um excerto das letras que explicam o conceito do álbum em si – “For I have learned that all men are brothers / And brothers only love each other / Brothers in arms / Brothers in each other’s arms / All the love God would allow / But all God’s love means nothing now”.

Com esta passagem, Lingua Ignota transmite a narrativa de como a traição, o abuso e tortura de um ente querido conseguem danificar a mente da vítima, ao ponto de considerar todos os homens objetos de apenas amor-próprio. Nesta faixa – e no álbum em si – temos presentes simbolismos religiosos como Deus, Satanás, Cristo, Inferno e Céu. E, com isto, o ódio e raiva de Kristin assume proporções bíblicas.

Chegamos a meio do álbum, com “IF THE POISON WON’T TAKE YOU MY DOGS WILL”, e Kristin Hayter volta a meter o pé no acelerador com um início abrasivo e imponente. Inicia-se com a repetição da frase “Kyrie eleison” que se traduz para “Deus tenha piedade”. A cantora nesta faixa está, de certa forma, a contactar com a serial killer Aileen Wuornos (responsável pela morte de sete homens).

Compara a sua experiência com o abuso físico que Aileen sofreu na vida, a doutrinação religiosa e a maneira como esta foi manipulada a pensar que todos os homens são de má índole. Hayter fala de Aileen de uma forma mais penosa ao tentar criar uma relação de amizade com ela ao dizer “Aileen / I’ll only say this once / I am the best friend you’ll ever have / All this (…) is meaningless/ Without me”. Os sentimentos de libertação corporal e espiritual feminina estão bem assentes aqui, quando esta aconselha Aileen a abandonar o próprio corpo para que nenhum homem o possa quebrar. As intensidades líricas e instrumentais para o final desta faixa provocam momentos que apenas se equiparam a uma viagem de ida e volta aos infernos.

A sétima música de CALIGULA, “DAY OF TEARS AND MOURNING” relembra-nos, no primeiro minuto, uma marcha funerária, um caixão a ser baixado à frente da sua lápide, com tenebrosos órgãos a encherem os nossos ouvidos. Contudo, essa escura harmonia rapidamente desaparece e é substituída bruscamente pelo som que Lingua Ignota é reconhecida: bateria abrasiva e berros incompreensíveis, transmitindo sentimentos de inquietude, atormentação e pânico.

“SORROW! SORROW! SORROW!” é, para mim, um dos pontos “baixos” do álbum. Meto aspas em baixos porque não deixa de ser uma faixa sublime. De facto, os vocais imponentes de Kristin são o aspeto mais positivo mas, em comparação com as restantes, esta é a que mais demonstra uma certa falta de direção. Para o fim, a adição de excertos vocais (apesar de adicionarem mais contexto à narrativa) é executada de uma forma constrangedora e “choca” com a sonoridade presente.

“SPITE ALONE HOLDS ME ALOFT” é das canções mais intensas do projeto. A leve melodia de piano com que se inicia fica cada vez mais intensa e grave, com pratos de bateria a servirem de apoio. Este momento calmo e emocional é arrancado, e os grunhidos de Kristin tomam conta da faixa, transfigurando-a numa quase música de black metal. A única coisa que faltava seriam os riffs pela qual o género é conhecido.

A frase icónica de Caligula – um imperador romano – “Let them hate me, as long as they fear me”, marca esta transição e aqui entendemos o nome do álbum. A este ponto vemos como o abuso emocional e físico que Kristin sofreu a transforma num ser que não é nada mais do que medo e rancor personificado.

O interlúdio “FUCKING DEATHDEALER” passa-nos de rasteira, não deixa grande impressão, contudo serve de transição para a última faixa do álbum: “I AM THE BEAST”. Nesta vemos que Kristin aceita o facto de se ter tornado na encarnação de uma besta repleta de luto e angústia após a relação traumática e tóxica na qual estava presa – “Beast he named me / Beast I am / I am / Grief”; All I know is violence”.

A primeira parte desta música, sendo marcada pela ressonância e por um ambiente assombroso, serve como um passeio de mão dada até chegarmos ao clímax que lhe sucede. Passamos de uma mão dada para um empurrão para um chão de vidro partido, ensanguentado, ensopado em podridão. Os gritos desfigurados de Kristin assinalam o fim da faixa e do álbum, enquanto a frase “Praise me” é repetida até ao seu fim brusco e sem piedade.

Depois de lerem esta crítica, entendo que sintam que CALIGULA não seja o álbum para vocês – é barulhento, atroador, violento, atormentador – mas não deixem que isso vos afaste do conceito no qual este álbum foi construído. Serve como uma forma de expressar o que não consegue ser expresso, de inspirar e ajudar quem sofre por causa de uma relação tóxica.

Os tais “hinos das vítimas”, como já foi referido. Os vocais são tanto majestosos como angustiantes e é essa dualidade que me atrai em Lingua Ignota: o contraste entre a poesia e a violência, o bem incorporado no mal. Se não se importarem de caminhar pelos corredores obscuros da mente de alguém que sofreu, manifestados pela sua música, então CALIGULA é um álbum a ouvir.