Tiago Guedes traz-nos uma história que retrata a vida dos portugueses para além dos lugares comuns. A Herdade conta-nos a vida de uma família proprietária de um latifundiário e a evolução das suas vidas, desde o início do fim do Estado Novo até à década de 90. Com um tom simplista e marcado por silêncios, aproximamo-nos de um quotidiano que melhor representa o português da altura.

Apesar da época em que se passa, de início marcada pela ditadura de Salazar, esta não é uma história dos heróis dos cravos. As referências e o clima estão lá e marcam a primeira parte do filme. É preponderante na narrativa, mas o foco é mais humilde. Vemos, por um lado, o povo trabalhador do campo que, ainda que ignorante e um tanto isolado, não foge aos olhos atentos da PIDE. E, por outro lado, um patrão que é a razão dessa atenção da polícia política, mas que não se deixa vergar. Reconhece a sua importância para o país e a dos seus trabalhadores para si.

A Herdade

Os tempos vão passando e mudam os anos em que se passa a narrativa, mas o foco mantém-se. É assim que nos apercebemos do retrato da família portuguesa, marcada por um patriarcado forte e sempre presente. É como um espelho daquilo que eram as relações de sangue da classe média alta. Vemos um pai emocionalmente distante, uma mãe psicologicamente desgastada e filhos negligenciados e criados pelas amas. Há ainda segredos cobertos pelo silêncio e obediência que deixam cicatrizes por toda a herdade.

Em A Herdade, a trama desenvolve-se num ritmo lento e pausado, um pouco à semelhança do tempo e do espaço em que se localiza. Somos deslumbrados diversas vezes por grandes planos de paisagens tão portuguesas como as das planícies do Alentejo, os traços típicos das casas das grandes herdades. Surgem imagens dos puro-sangue lusitanos e do povo trabalhador.

A cor acompanha as passagens temporais e espaciais, ajuda-nos a distinguir o campo da cidade, a classe média alta da baixa. A luz transmite a intensidade das cenas, faz-nos focar na personagem certa e mantém-nos atentos. Por isto, a cinematografia é, sem dúvida, o protagonista desta produção. Não quero, no entanto, desmerecer Albano Jerónimo e a sua incrível prestação como João Fernandes, dono da herdade.

A Herdade

Como já foi referido, o silêncio é um aspeto fulcral. Raramente somos acompanhados por música de fundo, o que torna as cenas em que esta se ouve mais impactantes. Tal é exemplo uma cena em específico, ligada à nossa história, que passaria despercebida não fosse pela canção que se ouve na rádio.

O diálogo destaca-se do comum dos filmes portugueses. Isto talvez pela naturalidade e facilidade com que se encaixa nas personagens, ou pelo humor rápido e inteligente que não cai em seco, mas fluí com a história.

O argumento perde força na segunda metade do filme. O ritmo lento a que nos habituamos torna-se monótono pelo destaque que dá a um drama incestuoso, tantas vezes visto na escrita portuguesa. Deixa, na primeira parte, o impacto político e social, com a prioridade ligada à mais desinteressante parte do drama familiar.

A Herdade

A produção de Tiago Guedes marcou presença em diversos festivais, com destaque para o de Veneza, onde foi nomeado para um Leão de Ouro e indicado para Melhor Roteiro e Leão de Prata de Melhor Diretor. Foi exibido, ainda, no festival de Toronto e será a aposta de Portugal para os Óscares de 2020.

A Herdade é, assim, um retrato de um povo português que é, por vezes, negligenciado quando se fala das épocas em que o filme se passa. Um espelho daquela que era a realidade a sul do rio Tejo, um relato do impacto da história além das cidade.

A produção peca pela lentidão e extensão com que se apresenta. Ainda assim, é, sem dúvida, um prodígio do cinema português que tem colocado e continuará a colocar a sétima arte portuguesa nas bocas do mundo.