Quase 30 anos depois da sua estreia nas longas-metragens, Pedro Almodóvar deixa-nos, em Dor e Glória, espreitar pelo óculo da sua vida. Tudo acontece de uma forma muito mais íntima e direta que em trabalhos anteriores.

Pedro Almodóvar é dos poucos realizadores do velho continente que ainda leva meia dúzia de fiéis às salas de cinema para assistir a uma produção europeia. O grande ecrã é, agora, massacrado pela notória falta de qualidade e inovação. Por isso, é um consolo que apareçam filmes como Dor e Glória. Isto recorda-nos de que o cinema é arte e não publicidade.

O filme habita em várias dimensões de perceção. Para quem não está por dentro da filmografia de Almodóvar, pode parecer a história de um realizador frustrado pela inatividade. Um autor aborrecido e torturado pela vida, que revisita o passado com saudade e, em certos momentos, frustração. Mas, quem conhece trabalhos anteriores do cineasta, o seu historial e visão estética, facilmente se apercebe das múltiplas pontes entre o realizador representado (Salvador Mallo) e o próprio.

O que torna a questão autobiográfica mais interessante neste caso é que, como não poderia deixar de ser, cinema é cinema. E, portanto, a realidade é manipulada e fantasiada pelo realizador quando fala de si mesmo. Cabe ao espectador destrinçar realidade de ficção para entender os níveis metafóricos do filme. Ou pode sempre deixar-se levar pela narrativa improvável de um realizador imaginário. Qualquer que seja a abordagem, Dor e Glória é um prazer para os olhos e uma prova de criatividade.

O trabalho do realizador espanhol retrata uma comovente e poética relação com o passado. À medida que o filme passa, Salvador Mallo é atingido por vagas de nostalgia, alimentadas pelo recente vício em heroína. São estas investidas do passado, levadas a cabo por reencontros com velhos amigos e afloramentos de memórias de infância.

Isto permite-lhe reconciliar-se com certos momentos da sua vida, recalcados até então pela dor e pela vergonha. No seio da nostalgia, principalmente no que toca à memória da sua falecida mãe (Penélope Cruz), Almodóvar consegue criar momentos de uma pureza comovente, enquanto nos transporta para os seus tempos de menino, numa Espanha dos anos 50.

Dor e Glória estreou em Espanha já em março e chegou a Portugal a 5 de setembro. Esteve indicado para a Palma de Ouro no Festival de Cannes, mas o galardão voltou a escapar a Almodóvar. António Banderas, no mesmo festival, ganhou o prémio de melhor ator pela sua interpretação de Salvador Mallo. O trabalho de Almodóvar é assim, mais uma vez, uma lufada de ar fresco no cinema.