No Fim Era o Frio é o novo álbum dos Mão Morta. O projeto da banda bracarense conta-nos uma história sobre o futuro da humanidade face aos problemas ambientais com que hoje nos deparamos.
Em adição, narra a solidão e a falsa esperança de salvação que as pessoas depositam em terceiros, e não nelas próprias. Adolfo Luxúria Canibal, vocalista e membro vitalício dos Mão Morta, contou como o álbum surge como “uma narrativa distópica onde conceitos como aquecimento global ou subida das águas do mar servem de cenário para um questionar e decompor de diferentes paradigmas do quotidiano.”
Em conversa com o ComUM, Adolfo mencionou que as 11 faixas não são propriamente músicas em si, mas sim “módulos”. Isto porque não têm refrãos, nem pontes, nem estrofes. São mais próximas de uma narração que ganha vida com os instrumentais presentes. São “longos ambientes” mais próximos do Krautrock – género musical presente na Alemanha nos anos 60 e 70 – do que propriamente músicas.
O título do projeto, No Fim Era o Frio, faz, a meu ver, uma alusão à bíblia. “No princípio era o Verbo” são as primeiras palavras da bíblia cristã, o início da história da humanidade. Com isto, podemos retirar que agora é a hora do nosso fim. O que começou com luz, acaba com o frio.
O álbum inicia-se com “O Despertar”, um instrumental onde está presente um (quase) “bocejo” assombroso, acompanhado por um lento riff e pela repetição cansativa do ritmo de outra guitarra. Isto tudo serve para marcar o tom deste projeto conceptual. Quase como se estivesse a formar e a despertar uma entidade maligna.
“O Mundo Não É Mais um Lugar Seguro”, prossegue com um ritmo lento de guitarra enquanto Adolfo nos narra o início da tragédia. Os desastres ambientais – representados pela “invasão” dos oceanos à terra – causaram a retirada das pessoas para as montanhas. Nestas, a humanidade vê-se circundada pelos seus próprios pecados e ilusões – os tais “rígidos factos herméticos”.
A humanidade fica reduzida a sobrevier em “bunkers”, após estas calamidades. E, em refúgio nestes “buracos”, a humanidade fica à espera de que alguém a salve, uma entidade cósmica, como o vocalista refere. Em vez de se fazer uma autorreflexão dos nossos comportamentos e erros, ficamos parados, “debruçados sobre os monitores”, enquanto vemos as tragédias a acontecerem à nossa volta, cada vez mais perto de nos afogarem.
“Um Ser Que Não Se Ilumina” é, para mim, o ponto alto do álbum. As leves batidas, o som do baixo e os vocais assombrosos de fundo marcam o cenário. Aqui, Adolfo vê-se em pânico, com um pressentimento de que alguém, ou alguma coisa, anda atrás dele. Um ser invisível, que lhe respira no pescoço e causa inquietude com o narrador. A humanidade irá sofrer pelos seus erros e males e esta “entidade” incorpora esses mesmos. O pior ainda está para vir, mas já se encontra muito perto de começar.
Na parte final desta faixa, o cantor vê-se quase que como possuído, face a este inevitável fim. O ritmo repetitivo, que vai acelerando aos poucos, cria em nós a mesma ansiedade e pânico que está a ocorrer no narrador, enquanto este grita palavras como um lunático. Os gritos demoníacos que se fazem ouvir, ao mesmo tempo, assentam a ideia de que a entidade está, de facto, a apoderar-se de Adolfo.
Em “Quem És Tu?”, um quase instrumental hipnótico-misterioso parece traduzir a ideia de que uma entidade se aproxima. Digo “quase” porque está presente um vocal arrastado que faz duas perguntas: “Quem és tu?” e “Que fazes aqui?”. Assim, reflete o estado de incompreensão em relação à “criatura” que aí vem.
A quinta faixa, “Oxalá”, a mais parecida a uma balada, reflete o espírito pessimista e desistente da humanidade, que se vê incapaz de corrigir o caos que causou. Aceita o seu fim e apela apenas por uma “morte indolor e rápida”. É de notar que as vozes cantam no mesmo ritmo que o instrumental em “O Despertar”.
“Passo o Dia a Olhar Para o Sol” continua este sentimento de pessimismo e de desistência. A Terra, que nós destruímos, não passa agora de um local de solidão e desconforto. Ao aperceber-se disto, o narrador fica apenas a olhar para os céus, novamente à espera de uma suposta salvação “extraterrestre”. Preso no “bunker”, a solidão de Adolfo assenta-se ainda mais “restam apenas memórias e vazio da ausência.” A asfixia e o peso das suas ações denotam-se cada vez mais nas letras – “Olho em volta, com falta de ar / A dar folga ao aperto que me assola.”.
A faixa seguinte, “Deflagram Clarões de Luz”, assume as mesmas caraterísticas narrativas da anterior. Os apelos de Adolfo a querer “sair” tanto podem estar a referir-se ao “bunker”, como ao próprio planeta. É das faixas mais bem compostas do álbum. Começa com um leve ritmo de guitarra clássica, quase como se nos fosse embalar, só para depois explodir numa autêntica sinfonia quando Adolfo descreve a “invasão” dos supostos extraterrestres. Os “clarões de luz” podem ser referência a naves espaciais de uma espécie invasora – “O céu fica cheio de aviões, espiões”. O pânico instala-se neste prefácio de guerra, revisto nos disparos que as pessoas atiram para o ar e no medo a estes seres.
Se a faixa anterior mostrava o lado mais extrínseco desta batalha, “Invasão Bélica” foca-se no seu lado mais intrínseco. Os instrumentais não têm a carga prévia. Estão, assim, quase como afogados no fundo. A voz rouca e grave do vocalista toma conta por completo da faixa. Os humanos perderam a batalha contra os seres hostis, quando neles julgavam ser a sua salvação. Ou se rendem, ou ficam trancados nos “bunkers”, à espera de que as águas elevadas os consumam.
“A Minha Amada” é a faixa mais longa do projeto, com 11 minutos da narração mais explícita possível do ato sexual com a sua querida amada. Inicia-se com uma batida à la Kraftwerk, que nos presenteia na primeira parte da música, e com Adolfo a acordar ao lado da sua amada. O facto de a letra ser tão descritiva pode surgir da solidão que este sente e das saudades que tinha de experienciar aqueles sentimentos todos.
A meio, acontece um plot twist, a amada era, afinal, um dos seres invasores, o “inseto gigante” a que o cantor se referia anteriormente. A letra, agora, assume uma caraterística enojada, longe da sexualidade anteriormente mencionada. Vomita para cima do ser e, em pânico, tenta soltar-se das mandíbulas do verme, mas sem efeito.
O inseto começa a devorar o corpo de Adolfo, até lhe cortar a cabeça. No entanto, ele não sente dor. Aliás, quase como uma projetação astral, “sai” do próprio corpo e observa o que lhe está a acontecer do lado de fora. Isto indica-nos que tudo isto não passou de um sonho/pesadelo. E, podemos assumir, que este sonho serve como uma premonição para o fim.
Tal como Adolfo morre, a humanidade também morrerá. “A Minha Amada” surge, deste modo, como a alegoria do medo e como a causa do caos está dentro de nós. Nós somos os culpados. E é essa culpa que nos irá “cortar” a cabeça e acabar com a nossa raça.
Há muitas mais explicações possíveis que se levantam com esta faixa: Adolfo pode estar mesmo a morrer e a amada é uma espécie de “luz ao fundo do túnel”; tudo o que aconteceu ao longo do álbum pode ser apenas um sonho e só agora é que o narrador acorda – referência à faixa seguinte “Isto É Real?” -; ou que, literalmente, veio uma espécie inimiga, que toma a forma de pessoas, acabar com a humanidade. Fica à interpretação de cada um.
Seguindo a interpretação que “A Minha Amada” era apenas um sonho, em “Isto É Real?”, o narrador acorda e fica ainda mais confuso. A solidão aperta-lhe cada vez mais o corpo. A turbulência mental que lhe causou tanto pânico chega a um ponto que o faz questionar tudo à sua volta: ele próprio, a amada, acontecimentos passados e a realidade em si.
Por fim, chegamos à faixa que conclui este álbum conceptual, “Sinto Tanto Frio”. Nesta, apenas são ditas três frases que põem, não um ponto final na história, mas um trio deles. “Sinto tanto frio, meu amor…”.
Será que foi tudo um sonho? Uma mera ilusão? Mão Morta não nos dão uma explicação. O que os bracarenses nos deixam bem assente é que não podemos refugiarmo-nos nos nossos “bunkers”, nas tecnologias e esquecer o que está a acontecer ao nosso redor. Um dia, aquilo que ignoramos pode voltar para nos assombrar.
Se tivesse de apontar um aspeto menos bom do álbum, seria em termos técnicos. Algumas vezes, a voz de Adolfo não se ouve tão claramente como se devia. Essa falha encontra-se mais presente em “Deflagram Clarões de Luz”, por exemplo. A própria voz do cantor não ajuda a decifrar certos versos.
No Fim Era o Frio é, sem dúvida, dos álbuns mais conceptuais e assombradores dos Mão Morta. Não é o mais violento musicalmente, mas é dos mais carregados com lírica significativa, alegórica e com premonições para a atualidade.
Um valente (e necessário) “abre olhos” para os ouvintes. As sinfonias são hipnotizantes, enquanto os vocais desesperados e, muitas vezes ofegantes, consomem os nossos sentidos. Neste clima de incerteza e de medo, Mão Morta deixam-nos ainda mais confusos, mas com música a acompanhar.
Álbum: No Fim Era o Frio
Artista: Mão Morta
Editora: Rastilho Records
Lançamento: 27 de setembro de 2019