Dia 4 do presente mês, Ghosteen foi oferecido à alma do mundo. Antes de chegar às mãos de quem quer que fosse, chegou ao coração de quem se dedicou a ouvi-lo, devendo ser lançado em versão física apenas a 8 de novembro.
Com mais de uma hora de duração, o último trabalho de Nick Cave and The Bad Seeds divide-se em duas partes. A primeira corresponde, segundo o próprio Nick Cave, às crianças, e a segunda aos pais. “Um espírito migratório”, foram as palavras que o artista escolheu para descrever a sua obra, claramente indissociável da morte de Arthur – filho do artista – há cerca de três anos. A própria capa do disco parece uma idealização do paraíso e, convém assinalar, é das mais belas da história da música.
Ghosteen é etéreo e espiritual. Ambientes e paisagens sonoras lindíssimas servem de abrigo para o luto, a meditação, o desalento e a inércia de Cave. Durante todo o disco, parecemos flutuar num outro mundo, às vezes quase como se estivéssemos a espreitar o paraíso. As palavras são praticamente faladas sobre um tapete de emotividade e tristeza.
Do início ao fim do álbum, a qualidade e a emoção das letras é constante no seu brilhantismo. Podíamos ler os textos de Cave e petrificar, ou arrepiarmo-nos, ou chorar, ou sentir um aconchego de esperança no coração. E quem melhor que o próprio para nos recitar estes poemas? A sua voz cansada e enrugada soa tão aterradora e desolada que se torna impossível desviarmos a atenção daquilo que estiver a ser dito.
O tapete sonoro deste projeto é conseguido em grande parte através da Eletrónica. Sintetizadores e cordas, e toda uma manipulação de sons e pads, pianos, teclados, guitarras e coros contribuem para uma experiência absolutamente nobre e comovente.
Todo o álbum soa incrivelmente honesto, puro e aberto. E falar de morte, de luto e de esperança desta maneira, demonstrando tanta sensibilidade, proximidade, humanidade, destreza e consciência, é um monumental manifesto do talento e do carisma de Nick Cave enquanto artista. Explorando a dicotomia morte/vida, sofrimento/beleza, é procurada uma espécie de aceitação do que significa viver.
Melhora progressivamente a cada escuta e parece cada vez mais capaz de se aproximar de nós. De nos falar à alma. A mim, pessoalmente, abalou-me muito mais do que esperaria. É, sem dúvida, um disco que mexe com o ouvinte.
Também por isso me é extremamente difícil avaliar com um número um trabalho assim. Não me parece, de todo, importante fazê-lo, pois é algo demasiado humano para se avaliar. Pode-se dizer que se torna quase exaustivo por se manter, de certo modo, num determinado registo (quase que inerte, na maior parte do tempo), mas podemos dizer que é um álbum incapaz de se levantar para correr ou saltar. É um álbum caído sem forças no chão de um paraíso belo e aterrador, esporadicamente levitando numa jornada com um destino maior. Isto é para além de uma espreitadela para um outro mundo.
As primeiras três canções são das mais belas do disco, talvez também as mais imediatas. Cada uma delas proporciona um momento ou mais de crescendos lindíssimos, ou melodias arrepiantes.
O fim de “Spinning Song” é, desde logo, um marco no resto do álbum, com os coros a juntarem-se à voz melancólica de Cave e a cantarem um envolvente “Peace will come in time”. A nível de estrutura e melodia “Waiting For You” é a mais convencional. “Your body’s anchor, never asked to be free / Just want to stay in the business of making you happy”.
A letra de “Bright Horses” é um texto memorável em que o sujeito poético passa por três diferentes estados de espírito. No primeiro sente uma força e paz interiores por acreditar em algo belo e fantasioso (como o paraíso). Depois contradiz-se e chama-se à razão, afirmando que as coisas são como são, “The fields are just fields and there ain’t no Lord”, chegando finalmente a uma conclusão “this world is plain to see / It don’t mean we can’t believe in something”. Termina com um momento de uma falsa e inocente esperança, extremamente comovente e real. “Well, there are some things that are hard to explain / But my baby’s coming home now on the 5:30 train”.
Em “Night Raid”, Cave evoca uma imagem que viria a ser recordada por mais que uma vez no decorrer da obra. “Jesus lying in his mother’s arms”, uma espécie de espelho daquilo por que a sua família estava a passar. Em “Sun Forest” temos mais ” temos mais um lindíssimo crescendo até ao refrão. A segunda parte de “Galleon Ship” tem momentos capazes de nos remeter para os tesouros mais preciosos dos Sigur Ros.
Em “Ghosteen Speaks” pressupõe-se que Cave imagine o que o filho lhe diria. “I am beside you, you are beside me / You are beside me, look for me”. A primeira parte acaba com “Leviathan”, onde sentimos uma certa influência de música africana, a lembrar um pouco Peter Gabriel o que, pensando bem, é uma associação que me ocorre com frequência ao longo de Ghosteen, ainda que neste pormenor específico, Gabriel tenha conseguido integrar estas influências de culturas diferentes com maior sucesso. A letra repete constantemente “I love my baby and my baby loves me”.
A faixa homónima do disco começa com uma intro bastante longa. Mas as palavras de Cave e a bridge lindíssima – um raro flash de felicidade genuína – perdida entre preciosidades poéticas como “The world is beautiful / Held within its stars”. O cantor australiano diz-nos “There’s nothing wrong with loving something you can’t hold in your hand”.
Segue-se “Fireflies” que era um poema antigo do próprio. Voltamos à imagem de Jesus nos braços de Maria. Desenvolve-se com a ideia de que, a partir do momento em que somos afetados com uma perda emocional, a vida é pouco mais do que incertezas, escuridão e sofrimento constantes, com instantes raros de esperança e iluminação. O poema desenvolve a conceção destas ideias de um modo elementar, quase científico. “A star is just a memory of a star”, lembrando que quando vemos uma estrela, ela pode já ter morrido, e nós nunca somos capazes de as ver como elas estão nesse momento. Enigmático e confuso, tem um caráter estranhamente épico e misterioso, proporcionando-nos um grande e impressionante momento.
Finalmente, em “Hollywood”, é-nos contada a história de uma mulher que perde completamente a cabeça por não saber lidar com a morte do filho, dizendo-se apenas à espera da sua hora. Com isto, acaba a pedir ajuda ao Buda. Este diz-lhe para procurar uma semente de mostarda numa casa que não tenha presenciado nenhuma morte.
A mulher, Kisa, não consegue encontrar em toda a aldeia uma família que não tenha já sido afetada com a morte. Nisto vai ter desconsolada com o filho e percebe “everybody’s losing somebody”. E nisto enterra-o na floresta. E acaba tendo de aceitar essa ideia. “It’s a long way to find peace of mind, peace of mind”. E voltamos ao final da primeira música “I’m just waiting now, for peace to come”. Com isto termina o álbum. Aceita com tristeza e mágoa uma tragédia e um completo desinteresse pela própria vida, com Cave a dizer-se apenas à espera da sua hora de morrer, da sua paz.
Ghosteen é um álbum incrivelmente belo, delicado e aterrador. É difícil apontar-lhe falhas porque descreve todo um estado de espírito, e fá-lo incrivelmente bem. A mensagem é passada com distinção e é uma obra tocante.
Musicalmente, apresentava espaço para algo mais, mas talvez isso desvirtuasse o propósito do álbum. Repleto de momentos mágicos, e assombrosos, é tão poético e ao mesmo tempo real que se torna por vezes difícil aceitar o que estamos a ouvir. Não deixo de sentir, no entanto, a falta de algo enquanto oiço o disco. Mas, quem sabe, não seja esse o objetivo.
Claramente tem tudo para ser um dos projetos mais marcantes do ano, quiçá da década, mesmo não sendo tão completo como o seu antecessor. Pelo seu significado e autenticidade, é impossível não se deixar mover pela sua força (ou falta dela). Nick Cave conseguiu tornar uma tragédia da sua vida pessoal num marco artístico do melhor e do pior do amor e da vida.
Artista: Nick Cave & The Bad Seeds
Álbum: Ghosteen
Editora: Ghosteen Ltd
Data de lançamento: 4 de outubro de 2019