You Are Forgiven é o mais recente álbum de Slow J. O cantor deixou cair uma bomba artística que provoca uma explosão de emoções naqueles que atentamente escutam as letras sentidas de um artista que somente deseja reconhecer o homem que vê do outro lado do reflexo.

A primeira vez que ouvi algum do trabalho do João Batista Coelho, mais conhecido por Slow J, não partiu de um ato voluntário. Nunca me considerei uma consumidora do chamado “Hip-Hop Tuga”. Sempre fui a que não conhecia os mais aclamados rappers portugueses da atualidade e tudo o que é associado a este ramo da música portuguesa.

Contudo, o som da “Vida Boa”, single lançado em 2016 pelo artista, ecoava pela rua enquanto passava. Quase que instintivamente, o meu corpo parou e viu-se forçado a ouvir até ao final. Talvez tenha sido a presença de uma sample de Bitch, Don’t Kill My Vibe”, de Kendrick Lamar, ou simplesmente a sua notável capacidade de escrita, mas a verdade é que, após esse dia, ficou impossível ficar indiferente à arte de Slow J.

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E, dois anos após o seu último lançamento The Art of Slowing Down, cá estamos de novo para receber e absorver, mesmo sem aviso prévio, tudo o que artista tem para nos contar. Penso que é seguro assumir que este álbum é um desabafo. Numa honesta conversa traduzida em poesia melódica com os seus ouvintes, Slow J expõe a verdade nua e crua do seu meio artístico, procura uma explicação para o seu desassossego interminável, enfim, uma tentativa de se reencontrar num labirinto onde em tempos se perdeu. E para todos os que impacientemente aguardavam a recompensa da espera de dois anos por um álbum, aqui o têm!

Carregar no play e iniciar a viagem musical pelo novo projeto de Slow J requer atenção. Não necessariamente uma atenção minuciosa às batidas, pois nisso teremos de confiar no talento do João enquanto produtor, mas sim nas letras que transpiram a sua dedicação dos últimos dois anos no estúdio. Desde as suas batalhas interiores provocadas pelo sucesso e pela fama, até ao sentimento de preenchimento da alma com o nascimento do seu primeiro filho, Slow J partilhou connosco toda a matéria-prima que serviu de base deste novo álbum.

“Também Sonhar” é a primeira música. Junta as vozes de Slow J e da notável Sara Tavares numa batida inicialmente leve, mas que com o decorrer dos segundos se vai intensificando. O sonho é a única luz dentro de nós que nunca se apaga. Slow J assume-se como o mensageiro que expressa a necessidade de abraçarmos os nossos sonhos.

Não só nesta música como noutras ao longo do álbum, é-nos dada a conhecer a história do seu pai, um homem desconectado com a sua paixão pela profissão, e o impacto que esta teve na filosofia de vida do artista. Contrariando o caso do pai, Slow J ocupa-se a fazer o que ama, mas numa procura constante de clareza que as tentações da sua profissão tentam ofuscar. O artista não é o primeiro a denunciar a ilusão que é a fama, e o quão enganador o mundo do meio artístico consegue ser. Agora que é pai de família, o artista claramente não esquece as suas responsabilidades, mas também se recusa a deixar que os seus sonhos lhe escapem por entre os dedos.

Com o contributo de Papillon, “FAM” surge numa batida tipicamente africana que fica no ouvido e é, claramente, a música mais alegre de todo o álbum. Com o pézinho a acompanhar a batida, facilmente um ambiente de amizade se instala e tudo o que lhe for exterior rapidamente se torna turvo. A mensagem que a letra comporta é de igual sentimento. Num claro apelo à fraternidade, não deixa escapar uma menção a Lucas Mangope, ex-presidente de Bophuthatswana na famosa e cinzenta época do Apartheid, criando, assim, uma narrativa para que todos nós nunca permitamos que a semente do ódio cresça dentro de nós. Como o título acusa, somos uma FAMília. Seguir esta batida implica pôr as nossas diferenças de lado e abraçar tudo aquilo que irmãos nos torna, pois quando for para ir para a mesa, “onde come um, comem dois”.

“Onde É Que Estás?” pode ser interpretada como um interlúdio, não só pela sua curta duração, mas também pela história que Slow J decidiu narrar nos seus versos. Quase que numa conversa com um espelho, Slow J dirige-se a Johnny boy e questiona-o sobre o rumo que a sua vida tomou. Quando ainda mergulhado na inocência da sua existência em que apenas procurava a felicidade, Johnny boy foi perdendo a noção das direções a seguir num troço construído com as pedras da fama. Com o desenrolar do ritmo e da letra, denota-se um escurecimento do humor do artista, como se uma nuvem cinzenta tapasse o sol. Esta música servirá de ponte para o conceito do resto do álbum.

“Lágrimas” e “Teu Eternamente” surgem como duas músicas que remetem para o plano amoroso. Ao som da guitarra portuguesa tocada por Nuno Cacho, Slow J abre o seu coração em “Lágrimas”, quarta faixa de You Are Forgiven. Num tom melancólico e escurecido guiado pela guitarra, as palavras fluem e formam um poema em que Slow J desespera com a ideia de a única pessoa que o completa sair da sua vida e ficar somente ele e uma guitarra, abandonado.

“Teu Eternamente”, única música do álbum que o artista deu a conhecer ao público em forma de single, em 2018, inicia-se com notas espaçadas num piano, que denunciam a amargura e a tristeza da música. Num autotune característico e habitual no Hip-Hop da atualidade, a voz do artista relata o distanciamento entre duas pessoas que, apesar de fisicamente próximas, perderam a conexão. E Slow J, numa clara posição de ressentimento, lamenta ter sido ele o motivo dessa desconexão e, na eventualidade da relação terminar, garante que será seu eternamente.

“Só Queria Sorrir” pode ser vista como uma continuação direta da música “Onde É Que Estás?”. Apesar de fluir num ritmo mais esperançoso e crescente, a letra desta faixa reforça a ideia de incapacidade em atingir aquilo que originalmente desejava. Após o artista ter visto as luzes dos holofotes, a sua visão inicial da sua vida e carreira ficou desfocada, e nem os aplausos daqueles que o veneram são capazes de o resgatar do vazio que sente.

Se não for o tom e a musicalidade de “Mea Culpa”, então que seja a sua letra que amarra a atenção. Ao que parece ser o som do choro de um bebé no início, segue-se uma letra em que Slow J inicia o processo de se perdoar a si mesmo por toda a negatividade que o acompanhou. Talvez este seja mais um interlúdio no álbum, uma vez que o sentimento que esta faixa trespassa é de libertação. Associar o choro no início da música ao nascimento do seu filho era o que Slow J tinha em mente, de modo a mostrar ao mundo que a sua criação foi o primeiro passo para sarar as feridas que o marcaram.

“Muros”, penúltima música antes do fecho deste projeto, é a prova do otimismo que Slow J vai progressivamente adotando ao longo de todo o álbum. Num som que transmite motivação e inspiração, qualquer muro que se forme pode ser derrubado pela força da determinação que cada um carrega dentro de si.

Mas talvez a essência deste projeto resida na última e mais longa faixa, “Silêncio”. Os acordes suaves da guitarra elétrica são convidativos e remetem para uma tranquilidade que Slow J certamente procurava, mas que igualmente acabou por nos obrigar a procurar. Um jovem João alimentado pelos seus sonhos e abraçado pela sua inocência de criança, rapidamente se vê perdido numa escuridão criada pela realidade.

O sentimento intrínseco de culpa que o acompanha resulta num momento de introspeção, onde cegamente procura a origem de toda a sua tristeza e mágoa. Carrega um ódio inexplicável, que dissipa quando o seu filho nasce, sendo este acontecimento o ponto de viragem na sua vida. Ao finalmente encontrar a paz e o silêncio, Slow J põe um ponto final num álbum em que os seus ouvintes podem, finalmente, respirar de alívio por este ter encontrado o perdão em si mesmo e fazer de nós os seus confidentes dessa conquista.

Dissociar o conceito do álbum à artwork do mesmo seria impossível. Num fundo azul escuro a aproximar-se do preto, desenha-se um labirinto em forma de impressão digital num tom de azul mais claro. E com o título do projeto ao lado, Slow J conquista a atenção visual. Assim, a ligação entre o conceito do álbum e a capa concretiza-se, o que torna o projeto ainda mais especial.

You Are Forgiven é, sem sombra de dúvida, dos melhores álbuns que o Hip-Hop Tuga testemunhou nascer. Slow J despejou a sua verdade num álbum que ultrapassa os limites de uma simples compilação de músicas, e fez do público português o seu confessionário.

Tornamos-nos as testemunhas do seu desassossego e das suas prostrações, mas também o acompanhamos nesta viagem atribulada que terminou com todo o barulho que até aqui o perseguiu. O projeto serve de permissão para meditarmos e nos reencontramos naquilo que é a busca por amor próprio. E, independentemente do nível de relação que possamos encontrar nas palavras de Slow J, You Are Forgiven transformou-se num espaço seguro onde podemos estar num silêncio que não incomoda, apenas conforta.