Vem e Vê, realizado por Elem Klimov em 1985, estreou pela primeira vez em Portugal no dia 29 de agosto de 2019. Considerado um dos filmes mais fiéis no que toca na representação dos horrores da Segunda Guerra Mundial, após 34 anos não deixa de impressionar todos os seus espectadores.

A longa-metragem desenrola-se na Rússia e retrata o inferno vivido por um pobre rapaz chamado Florya, cuja idade estará por volta dos 13 anos. O protagonista escreve a sua sentença ao desenterrar uma arma, enquanto brincava com o seu vizinho, o que acaba por chamar à atenção, tanto do exército russo como do nazi. A partir daqui, a sua vida muda radicalmente e este é retirado da sua casa para se juntar às tropas russas. Isto vai deixar marcas profundas e traumatizá-lo para o resto da vida.

Vem e Vê

O conceito que melhor vem definir esta narrativa é, sem dúvida, impiedoso. Tal como o próprio título sugere, o espectador é convidado a conhecer, de forma real, cruel e implacável, a experiência pessoal de uma criança à vivência de uma guerra. Assim, é através de um inicial olhar inocente do rapaz que vamos conhecendo a sua realidade.

No entanto, com o desenrolar da ação, percebemos que a sua perceção sobre os acontecimentos se vai tornar também ela, progressivamente, mais fria e factual. Esta mudança a nível do pensamento é também retratada a nível físico. Deste modo, no início da obra podemos ver um criança com um ar jovem, puro e algo ingénuo, ao passo que, no fim, vemos Florya com uma cara envelhecida e extremamente cansada, cheia de rugas e cicatrizes, provocadas pela falta de uma infância e por ter sido obrigado a conhecer um mundo extremamente medonho.

Ao contrário daquilo a que os filmes de Hollywood nos têm habituado, a narração de Vem e Vê é tudo menos romantizada ou embelezada. Vai ao encontro do estilo cinematográfico russo, que sempre se pautou pela representação fiel dos factos, com um caráter profundamente político e social.

Vem e Vê

Klimov teve a sensibilidade de perceber o valor da imagem na construção dos sentidos dos acontecimentos. Usou-a como mais um ponto a favor da sua implacável forma de representar uma realidade tão dura, o que faz com que a nossa empatia para com o protagonista seja ainda maior. Para isso, não se proibiu de explorar qualquer tipo de cena, desde mortos desnutridos empilhados uns nos outros, até à própria expressão de medo e desespero de uma criança que se encontra perdida num mundo cruel.

É assim que, de certa forma, se consegue “normalizar” o conceito de maldade em Vem e Vê, ao torná-la em algo quotidiano e recorrente e ao transformar a realidade social vivida da personagem. No entanto, consegue estabelecer-se um paralelo antagónico ao fazê-lo de uma forma mais poética, seja através das frames usadas, seja através do discurso.

A rapariga que Florya conhece no período de guerra vem despertar este mesmo lado. Glasha consegue tornar-se o único exemplo de família que resta ao rapaz, e sofre com ele as consequências da Segunda Guerra Mundial.

Vem e Vê

É importante ressalvar a interpretação de Aleksei Kravchenko (Florya) que, com apenas 16 anos na altura, conseguiu demonstrar, nas suas expressões faciais e corporais, toda a bagagem emocional da personagem. A tarefa era difícil de atingir dado ao contexto e tendo em conta o facto de não haver muitas falas no filme quanto aquelas a que estamos habituados. Por isto, muito do foco se prendia com a postura da personagem, algo que o ator soube trabalhar de forma impressionante.

Aliada ao trabalho de Aleksei, está também a atuação de Olga Mironova, que interpretou o papel de Glasha, a jovem que Florya conhece enquanto membro do exército. Ambos se tornam amigos e vão juntos para todo o lado, até que são forçados a separar-se. As cenas de dança da rapariga deram origem a alguns dos momentos mais icónicos da obra. Espelham a inocência das crianças em relação à guerra e à falta de momentos próprios para as suas idades.

O sucesso do trabalho passa também pela banda sonora, devido à escolha de temas emblemáticos. Entre outros, destacam-se “Lacrimosa”, do Réquiem de Mozart, a “Calvagada das Valquírias”, de Wagner, e ainda vários temas de Oleg Yanchenko, que ajudaram a construir a personalidade das cenas.

Vem e Vê

Apesar da falta de meditatismo, próprio e comum de um filme não americano, Vem e Vê é uma das obras mais elucidativas acerca daquilo que aconteceu na Segunda Guerra Mundial. Não é um filme para qualquer pessoa, por conter conteúdos muito explícitos. No entanto, o seu elemento diferenciador e de virtude passa precisamente pelo retrato fiel dos acontecimentos.

O filme é particularmente tocante, uma vez que conseguimos perceber até onde a maldade do ser humano consegue ir. Vemos que este se torna muitas vezes uma máquina assassina que não tem compaixão ou remorsos. Além disso, trata um tema que, infelizmente, nunca deixa de ser atual e que nos faz parar para pensar nas barbaridades que acontecem atualmente. Entre estas, destaca-se o que acontece a muitas crianças e adultos em países que ainda se encontram em guerra e que recebem muito pouca ajuda externa.