Há cerca de 124 anos, os irmãos Lumière projetaram uma invenção que mudou o mundo para sempre, criando o cinema. Agora, a batalha do cinema tradicional com as emergentes plataformas de streaming é cada vez mais real, e está a deixar a indústria cinematográfica num completo caos.

Ao longo dos anos, o cinema tem atuado como difusor cultural mas, acima de tudo, a grande sala escura é lugar de uma experiência social cada vez mais esquecida. Todos os dias vemos novas plataformas de streaming a nascer e a abafar o cinema como era até agora conhecido. No grande ecrã, heróis e vilões lutam e homens mortais tentam sobreviver a ataques de animais ferozes na tela grandiosa. No entanto, a verdadeira guerra passa-se, na verdade, entre as salas e os serviços digitais.

Sejam elas Netflix, HBO, Hulu, Disney+, Apple+, Amazon, entre outras, já deu para perceber que esta nova tipologia de visualização de filmes veio para ficar. Cada vez mais realizadores optam por apresentar os seus trabalhos nestas plataformas, ao invés das grandes estreias nas salas de cinema. As opiniões são, então, divergentes em relação a este assunto mas, na verdade, o caos já está instalado e a indústria cinematográfica está a entrar num conflito gigantesco.

O pico desta luta foi claramente visível na 71ª edição dos Primetime Emmy Awards. A Amazon desenvolveu um serviço de voz que se liga à aplicação de streaming para, de acordo com os criadores, dar aos clientes “uma maneira mais intuitiva de interagir com a tecnologia que eles usam todos os dias”. A utilização ou não de anfitriões nestas galas é opcional, mas interligar ambas as coisas e ter, no lugar de apresentador, um serviço de voz de uma plataforma de streaming seria extremamente conflituoso. No entanto, foi o que aconteceu nesta gala.

A confusão instalada na 71ª noite dos Emmy Awards, foi ainda alvo de sátira por parte dos apresentadores de televisão Stephen Colbert e Jimmy Kimmel. “Daqui a nada começam a usar a Alexa para apresentar os nomeados”, brincou Stephen Colbert, no palco dos Emmys. Sem deixar sequer o convidado terminar o discurso, a voz robótica da Amazon interrompe para apresentar as nomeadas a Melhor Actriz em Série de Comédia. Caos gerado, completamente, devido à influência da Amazon e dos serviços de streaming na indústria cinematográfica e na gala.

Está visto, então, que o frente a frente entre as plataformas de streaming e as salas de cinema não acaba por aqui. A experiência social do cinema está a ficar pelo caminho e, em pouco tempo, nada a poderá salvar. Contra mim falo, pois também gosto de ver as coisas no quentinho do sofá. Não prescindo, no entanto, de uma boa ida ao cinema, do cheirinho das pipocas caramelizadas, do grande ecrã que nenhum outro consegue ultrapassar ou até do não poder fazer qualquer mínimo barulho, na consequência da vergonha de ouvir um grande “shiu”.

Devo admitir que, na estreia do remake do clássico O Rei Leão, o que mais me animou não foi apenas o filme em si. E digo isto não com intenção de tirar créditos à obra, de todo. A Jon Favreau deixo o meu mais sincero aplauso pelo trabalho excecional. Mas, críticas cinematográficas à parte, o que me alegrou foi a presença de várias gerações: a presença de pais e irmãos mais velhos que, num filme especialmente infantil, apresentaram aos filhos, irmãos, sobrinhos e primos o que foi também uma parte da sua infância.

É este lado social que sublinho. O poder do cinema de ligar pessoas, gerações e culturas, de as juntar no mesmo espaço para, durante cerca de duas horas, partilharem algo único. Porque o mesmo filme nunca se vê duas vezes da mesma forma. A experiência é sempre diferente, porque, naturalmente, as pessoas são também diferentes.

Quem nunca se restringiu de rir em determinado momento de um filme para não ser mandado calar pelos espetadores que não apanharam a piada? Ou saltou na cadeira num filme de terror porque se assustou mais com o salto da pessoa ao lado do que com a cena em si? Onde está este lado social se estivermos só deitados no sofá, sem as cerca de 200 pessoas à nossa volta, onde não corremos o risco de levar com o balde de pipocas da pessoa atrás de nós? Como se dá esta experiência se estivermos sozinhos em casa, demasiado confortáveis, a ver um filme? Atrevo-me a dizer que não se dá. A experiência social do cinema está cada vez mais ameaçada porque não acontece com os serviços de streaming.

Como amante de cinema devo dizer que isto me deixa triste. Não sei até que ponto a própria qualidade cinematográfica não será também ameaçada com a crescente quantidade de conteúdos digitais. Devo, então, apenas esperar que, apesar de o cinema tradicional estar, de momento, a perder uma batalha, acabe por ganhar a guerra. Espero sinceramente que as belas idas ao cinema e as grandes estreias no grande ecrã não se percam. Porque sim, caro colega desconhecido da cadeira ao meu lado na fila C, vi-o chorar durante a morte do Mufasa. E não há problema nenhum com isso, foi uma bela experiência.