Passámos Por Cá é o mais recente trabalho de Kevin Loach, que nunca sucumbiu às virtuosidades de Hollywood. Numa abordagem realista, o cineasta britânico denuncia o desespero de cada indivíduo e, consequentemente, o colapso do coletivo, num manifesto.

Três anos depois de arrecadar uma Palma de Ouro em 2016 com Eu, Daniel Blake, Ken Loach regressa com mais um retrato social da Inglaterra ingrata para com o seu povo. A mais recente crítica social é, mais uma vez, argumentada por Paul Laverty. O trabalho evidencia os efeitos colaterais provocados pelas horas de trabalho desmedidas, talhadas por obrigações contratuais. No meio de tudo isto, não sobra espaço para nada além do emprego e os salários mal são suficientes para pôr pão na mesa.

Passámos por Cá

A trama segue o dia-a-dia dos Turners, uma família desfavorecida e endividada, onde Kris Hitchen tem o papel de pai e Debbie Honeywood atua como mãe, numa interpretação pura e irretorquível. Ambos passam o dia numa luta constante para pagar as contas, desesperados porque o tempo mostra-se parco. Para além disso, as vertiginosas voltas do relógio não permitem conciliar as responsabilidades exploratórias do trabalho com as necessidades emocionais dos dois filhos.

Rhys Stone interpreta um adolescente em rebelião, um cérebro astuto mas revoltado. Já Katie Proctor desempenha o papel da filha mais nova do casal, que equilibra o drama com a leveza e a inocência de uma criança confusa que tenta resolver os problemas que atormentam o seu ninho.

Existe uma maior proximidade com a rotina do pai que, depois de uma vida a trabalhar no que ia sendo possível, decide endireitar, por fim, a linha torta por onde sempre caminhou. Candidata-se a uma entrevista numa empresa de entregas, reinada por um patrão obcecado com as estatísticas excecionais pelas quais é conhecida a sua plataforma.

Passámos por Cá

Ricky Turner é, então, satiricamente seduzido pela possibilidade de um futuro promissor: liberdade, autonomia e ascensão numa carreira que crê livrá-lo do caos financeiro. O patrão chega a caracterizar o armazém onde alberga dezenas de trabalhadores como uma “mina de ouro” e revela-se, durante o filme, implacavelmente intolerante às necessidades e aos contratempos pessoais de cada funcionário.

Abbie Turner vê também a sua vida dificultada, por ter de abdicar do próprio carro para que Ricky possa começar o seu emprego. Os serviços que presta em casa de pessoas idosas ou desabilitadas – um lembrete triste e doloroso dos cortes nos serviços sociais – passam a ser meticulosamente organizados em função dos horários dos transportes públicos. Os dias da mãe são assim subjugados a uma correria incessante, num sufoco interminável. Altruísta e de ideias bem assentes, acaba por ser a personagem mais afetada pela nova etapa da vida do marido.

Passámos por Cá

A rotina dos Turners converge ao anoitecer, para uma exaustão, frustração e desespero partilhados. O filho mais velho encontra-se no auge da sua revolta contra as debilidades da sociedade injusta da qual os pais são vítimas. Deste modo, em tom de manifesto, desperdiça o percurso escolar para grafitar paredes em locais improváveis.

O enredo deixa pouco espaço para respirar e são poucos os momentos de alívio. Os últimos são proporcionados por situações cómicas ou baseados no âmago da união familiar, mas a sua escassez traduz visualmente a triste realidade incontornável da classe trabalhadora.

Com uma ambiência inegável, Passámos Por Cá é composto por cenas obviamente pensadas ao pormenor. As atitudes, a especificidade e a movimentação das personagens resultam do talento de Loach enquanto realizador. Em 100 minutos, foi capaz de apresentar cinematicamente a realidade socioeconómica de uma família que, por mais que tente, não consegue escapar à espiral viciosa do débil – e vergonhoso – sistema inglês. São evidentes a perspicácia e consciência de Loach no que toca à injustiça do mundo moderno.