O Irlandês é a mais recente grande produção da Netflix. Realizado pelo gigante Martin Scorsese, este não é apenas mais um filme sobre a máfia. Explora a banalidade dos atos criminosos, o legado da violência deixada em veteranos da II Guerra Mundial e a humildade de ser apenas mais um trabalhador a tentar agradar o patrão. Com um elenco de excelência e um ritmo bem construído, nem damos pela passagem de três horas e meia que completam a narrativa.

A longa-metragem começa num lar de idosos, onde um velho, Frank Sheeran (Robert De Niro), conta a sua história de vida e como se tornou amigo do chefe da máfia Russell Bufalino (Joe Pesci). Frank é um teamster (ou seja, um motorista de camiões que transportam carne) que não se importa de cometer um crime ocasional, o que o coloca no radar de Bufalino e outros mafiosos. Eventualmente, essa amizade cruza Frank com o presidente do sindicato dos camionistas Jimmy Hoffa (Al Pacino), que tem uma espécie de acordo com a máfia.

O Irlandês

Os líderes da organização criminal querem construir casinos, mas os bancos não lhes emprestam o dinheiro. Hoffa lidera o sindicato e pode usar suas taxas e pensões para investir nisso mesmo. Mas, com o passar das décadas, o seu relacionamento com a máfia esgota-se e Sheeran fica preso no meio.

O Irlandês é longo, sim, mas Scorsese soube utilizar corretamente o tempo. É usada a tecnologia para reduzir as marcas visuais de idade, visto que o filme cobre cerca de seis décadas, pelo que se vê a evolução física das personagens. Com um humor seco e rápido, quase subtil, diálogo natural para aquelas que imaginamos serem as conversas de mafiosos, envolvemo-nos na biografia de Sheeran. O trabalho salta alegremente quando o velho nos conta sobre algum homem específico, até que um texto pisca na tela e nos diz que essa pessoa morreu horrivelmente.

Ao contrário de outros filmes do realizador, não há cenas épicas de violência, nem se dá tanto destaque aos crimes. São tratados com indiferença na generalidade. O Irlandês ainda é violento, mas de uma maneira fria e insensível. Foca-se, por outro lado, nas relações entre os mafiosos, o modo como vêm o mundo, como se vêm nele e como os outros os vêm.

O Irlandês

Este ponto de vista é particularmente importante, exatamente pelo modo como Peggy, filha de Frank, via o pai. A rapariga viu-o antes dele próprio se ver, viu-o pelas brutalidades que cometia e o criminoso que era, ainda que o próprio nos quisesse levar a acreditar que era boa pessoa. Peggy é uma personagem marcada pelo reduzido diálogo e o silêncio, que expressa exatamente o tipo de relação que vem a ter com o pai.

Na essência, Frank, Russel e Jimmy não são boas pessoas. Scorsese tomou o cuidado de nos entregar personagens que refletissem a sociedade americana da época. Homens marcados pela II Guerra Mundial, habituados a servir e a agradar o superior e sem medo de serem cruéis, porque foi isso que lhes foi ensinado na guerra. Através de Frank, vemos a incapacidade de formar ligações emocionais complexas e relações facilmente descartáveis. Através de Russel percebemos o que acontece quando a prioridade não é a família e os amigos, mas sim o próprio enriquecimento monetário. Jimmy é, talvez, a personagem mais visivelmente emocional dos três. Ainda assim, o seu egocentrismo resulta na mais grave consequência.

De Niro, Al Pacino e Pesci demonstram a que se deve a excelência das suas carreiras. Com a sua performance, as personagens que interpretam ganham novo brio e cor. Não é possível imaginar qualquer outro ator no lugar de um deles, pois a suas próprias essências caracterizam as personagens.

O Irlandês

A banda sonora coloca-nos no centro das décadas representadas. O início e o fim marcam-nos especialmente, ao som de “In The Still Of The Night”, de The Five Satins.

O vestuário e maquiagem contribuem não só para a contextualização temporal, mas também para revelar a passagem do tempo. Não é a tecnologia usada para rejuvenescer De Niro, Al Pacino e Pesci que nos distrai, são as lentes azuis do primeiro o fator mais distrativo.

Assim, O Irlandês não é um Tudo Bons Rapazes ou Casino. É, na verdade, um olhar sobre a “grande geração” da América, aqueles que se tornaram veteranos da II Guerra Mundial e construíram a sua realidade sob a violência à qual sobreviveram e sob o sistema que o permitiu. Ainda que com um tema abrangente e corrente do realizador, é-nos oferecida uma narrativa mais pessoal e introspetiva, que nos move para além da ação e nos guia à nostalgia de vidas não vividas por nós.

Não há uma conclusão ou moral da história a retirar. No final, continuamos sem saber bem que tipo de homens eram Bufalino, Hoffa e, especialmente, Sheeran. Mas é esse o ponto. Scorsese deu-nos três horas e meia de filme, e mais umas quantas para refletirmos sobre ele.