Os Mutantes são uma banda brasileira e lançaram A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado há 50 anos. Formado em pleno Movimento Tropicalista, é impossível desligar o contexto social do Brasil aquando do lançamento do projeto.
Conhecidos e reconhecidos pelo sentido de humor aguçado, Os Mutantes são uma das bandas de Rock brasileiro mais aclamadas. Inovadores na forma de fazer música e nas técnicas, o grupo teve uma história cheia de percalços, porém voltou ao ativo em 2006.
“Ando Meio Desligado” abre o projeto. O ritmo é alegre e cativa durante os quatro minutos iniciais. Fala de uma desconexão da realidade de forma elétrica e histérica. Parecemos entrar num estado alegremente psicótico com a quantidade de efeitos sonoros utilizados – e, com sorte, podemos mesmo sentir-nos a desligar e a entrar num outro mundo.
Em “Quem Tem Medo de Brincar De Amor” o ritmo muda entre o frenético e a calmaria. Os destaques vão aparecendo pelo meio quando ouvimos o que se assemelha ao efeito sonoro dos desenhos animados, quando algo é atirado pelo ar, ou quando reparamos no sotaque com que a música é cantada. Estes elementos conferem leveza e conseguem arrancar uma gargalhada ao ouvinte.
“Ave, Lúcifer” é a terceira faixa e destoa de todas as outras. A vocalista parece procurar por símbolos de satanismo e deseja Lúcifer. A voz de Rita Lee consegue, ainda assim, ter destaque e conquistar pela suavidade.
“Desculpe, Babe”, “Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo”e “Jogo De Calçada” não se destacam particularmente em nenhum aspeto. Seguem um registo muito próximo; as diferenças relativamente umas às outras não são suficientemente surpreendentes ou chamativas pelo que caem facilmente em esquecimento. “Haleluia” é cantada em coro o que a torna ligeiramente diferente das restantes faixas. No entanto, faz lembrar algo que passaria com poucas alterações na missa de domingo.
“Meu Refrigerador Não Funciona” é a faixa mais longa, mas nem se dá pelo tempo passar. Começa misteriosa e logo se revela como uma das melhores músicas de todo o projeto. Parte da letra é cantada em inglês e o piano faz lembrar, em partes, uma música de igreja. Os vocais recordam-nos de que o grupo é uma banda Rock e os efeitos sonoros têm grande contributo. Quem diria que uma música com o nome de um eletrodoméstico a deixar de funcionar iria resultar tão bem? Eu não.
“Hey Boy” e “Chão de Estrelas” conseguem também destacar-se. A primeira começa com um assobio e com a voz sedutora de Lee. Relata o dia-a-dia de um rapaz que passeia pela Rua Augusta. É leve, os efeitos sonoros são usados de forma mais contida do que noutras faixas e a guitarra brilha perto do final – o que dá uns pontos extra à faixa. “Chão de estrelas”, por outro lado, é uma bela balada que surpreende. É poesia com uma reviravolta pelo meio: uma carrada de onomatopeias que nos acordam e nos fazem querer dançar.
“Oh! Mulher Infiel” encerra aquele que é o terceiro álbum de Os Mutantes. É Rock com algumas experiências pelo meio. O ritmo é energético, quebra a meio e volta a surpreender nos minutos finais. Diria que é um belo resumo do projeto.
A utilização de “divina comédia” remete facilmente para a obra épica de Dante e não é difícil perceber as semelhanças e o jogo feito pelo grupo. Tal como a obra, são vários os sentidos e significados que se podem retirar do álbum. A faixa que abre é o exemplo perfeito disso: tanto pode ser interpretada como a sensação que se tem de entrar num estado psicótico, como pela sensação de estar apaixonado.
A capa do projeto remete-nos para um lugar sombrio e, de certa forma, macabro. É o exemplo perfeito de que não se deve julgar um livro pela capa – ou neste caso, um álbum. A faixa mais sombria que existe no projeto é “Ave, Lúcifer”, e mesmo essa consegue fazer parte de um projeto coeso na capacidade de arrancar um sorriso do rosto.
A utilização de efeitos sonoros é uma constante no álbum, bem como as quebras de ritmo que levam o ouvinte a ficar intrigado e a querer mais. Situado num panorama internacional ao lado de bandas como Pink Floyd ou Led Zeppelin, Os Mutantes levaram ao Brasil as influências de outros mundos, sem nunca esquecerem a sua própria identidade.
Álbum: A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado
Artista: Os Mutantes
Data de lançamento: 1 de fevereiro de 1970
Editora: Polydor Records