OVO foi a banda sonora do Millenium Dome Show, correspondendo ao décimo primeiro álbum do artista britânico Peter Gabriel. O Millenium Dome Show foi um mega espetáculo celebrativo da passagem do milénio, levado a cabo no ano 2000.

A participação de Peter Gabriel num projeto deste género não constou grande surpresa para os fãs do cantor, uma vez que este sempre se mostrou predisposto a fazer da sua presença algo válido e contributivo para todos. Além da forte associação ao Rock Progressivo, pelo seu trajeto revolucionário nos Genesis, nos anos 70, destacou-se como um propulsor ávido daquilo que é chamado de “World Music”.

jornaltornado.pt

As publicações ou partilhas musicais sob o seu nome têm sido cada vez mais escassas. Apesar de tal poder ser frustrante para os seus seguidores, confere a Gabriel uma discografia incrivelmente relevante e consistente. Falando especificamente da década que findou no mês passado, não há sequer qualquer álbum de originais do artista.

No entanto, pegando agora no que realmente importa e falando de OVO, posso, pessoalmente, dizer que este foi um dos álbuns mais marcantes e presentes da minha vida, tendo-me acompanhado desde o berço até agora. Já o ouvi de muitas maneiras diferentes, em períodos distintos da minha vida. Não posso afirmar conscientemente que sou completamente imparcial na minha análise crítica ao mesmo e talvez por isso vá tentar distanciar-me um bocado dessa ideia.

Convém descrever brevemente o enredo base do projeto. Uma história de amor entre um rapaz do “povo do céu” e uma rapariga do “povo da terra” que se apaixonam, mas veem-se obrigados a lidar com muitas dificuldades por uma guerra que separava os dois povos. O povo da terra acaba por ser derrotado, sendo obrigado a unir-se aos seus inimigos. No fim da história, os dois apaixonados sobem ao céu para abraçar um futuro mais risonho. Convém assinalar que, apesar de, tecnicamente, este álbum corresponder a uma “soundtrack”, é mais do que justo afirmar que soa a bem mais que isso.

Não sendo perfeito do início ao fim e não obstante o facto de alguns momentos se sobreporem a outros menos bem conseguidos, o álbum (conceitual) desenrola-se com grande naturalidade e fluidez. Um conjunto enorme de guest vocals contribuem para engrandecer o projeto e, se podemos dizer que se sente, por vezes, falta da voz de Gabriel, devemos também apreciar o seu papel na obra. À parte a primeira música, que nos traz uma incorporação de Rap pouco inspirada  e um instrumental não tão denso e interessante como no resto do álbum, a verdade é que, vocalmente, este é um trabalho muito bem conseguido.

Low Light” é uma faixa lindíssima, bem mais própria que a anterior para abrir o disco. Aliás, na edição especial do mesmo, é esta a primeira música. O som do piano sobre um ambiente místico, suave e calmo introduz a linda voz do irlandês Iarla Ó Lionáird, num momento de rara beleza.

Em “The Time Of The Turning” os pormenores eletrónicos fazem-se mais notáveis, dando caráter e luz ao tema. Isto é, a bem dizer, uma constante ao longo de todo o disco. Os arranjos às cordas, induzidos numa relação de simbiose com as diferentes vozes que nos vão sendo apresentandas, sobre variadas relíquias a nível de composição e escrita.

Temos, mais tarde, um “The Time of the Turning (Reprise)/The Weaver’s Reel” separado da anterior pela instrumental e intrigante “The Man Who Loved the Earth/The Hand That Sold Shadows”que não é, de todo, das faixas mais bem conseguidas do projeto. Os elementos de World Music começam a ser explorados e desenvolvidos de diversas maneiras e momentos. O acumular de tensão a resolver num clímax de batidas tribais a anteceder “Father, Son” (a belíssima e melódica balada do disco), são passagens memoráveis na viagem que este nos proporciona.

Convém destacar, portanto, “Father, Son”. Constitui uma peça única em que o próprio Peter Gabriel nos embrulha um momento emotivo, acompanhado pelo piano e por um arranjo simples de sopros e cordas, numa canção em que o rapaz do céu fala do apoio incondicional do pai. Segue-se mais um dos momentos altos do disco, com a atarantada e destrutiva “The Tower That Ate People”. Tensa, intensa e dramática, é um bom exemplo daquilo que de melhor este projeto tem para nos oferecer. Passando por várias fases, com o coro final de vozes a acompanhar Peter Gabriel só para depois terminar no caráter inicial da canção. Simplesmente fantástico.

Seguem-se “Revenge” e “White Ashes”, duas pequenas faixas que dão seguimento à história do disco. Apesar de praticamente não terem letra, culminam naquilo que é um final de álbum absolutamente genial com “Downside-Up”, “The Nest That Sailed The Sky” e “Make Tomorrow”. A primeira das três dá a ideia de ser o single do disco, com o refrão claro a ficar-nos na cabeça mesmo depois de pousarmos os auscultadores ou desligarmos a aparelhagem. Relembra aquilo que é um dueto lindíssimo de Elizabeth Fraser e Paul Buchanan, com os seus momentos melódicos e os seus momentos mais ritmados e dançantes, com destaque para o groove do baixo de Tony Levin.

The Nest That Sailed The Sky” é uma música ambiental e transcendente, que corresponde ao momento em que um ninho sobe ao céu com os dois personagens fulcrais. Este é um tema simples e gracioso, que Gabriel revisitou, inclusive, em New Blood, um álbum onde reinterpreta algumas das suas próprias canções, acompanhado de uma orquestra.

Temos, por fim, “Make Tomorrow”: a melhor e mais longa faixa de OVO. Complexa, experimental e vanguardista, desdobra-se em diversas fases, com a predominância dos elementos eletrónicos e dos seus atributos fortes e valências quase ilimitadas sempre a servirem a música, antes de tudo o resto. Surgindo como uma espécie de epílogo depois de tudo acontecer, com tudo ainda para acontecer.

Como sempre, Peter Gabriel dá que pensar. E OVO é, sem dúvida, um dos projetos mais interessantes e envolventes da sua fantástica carreira.
Demonstrando, mais uma vez, a disponibilidade e a vontade de se reinventar e de oferecer ao seu público coisas novas e diferentes, que acrescentem algo a toda a gente, Gabriel reafirma-se como o artista brilhante que é.