A Plataforma, de Galder Gaztelu-Urrutia, estreou a 20 de março. Além de necessária, é uma alegoria simples e eloquente que deixa cego aquele que não quer ver. Por isso, não é o ideal se estão à procura de um filme que vos faça esquecer o caos com que nos deparamos atualmente.
A narrativa deste thriller baseia-se numa distopia suficientemente simples, mas nem por isso menos sombria. Uma prisão vertical regida por um mecanismo rotativo que transforma burgueses em vassalos e vice-versa. A única fonte alimentar digna é uma plataforma que parte, todos os dias, do topo da prisão com um banquete imenso.
A condição humana vê-se aqui ameaçada por, não chocantemente, humanos. Os que se encontram nos níveis mais elevados alimentam-se como reis, sem olhar ao próximo e deixam apenas as sobras para os que se encontram abaixo deles, a plebe. Para além disso, ninguém conhece a totalidade dos patamares, nem, portanto, quantas pessoas dependem dos míseros restos alimentares que deixam por ganância e irracionalidade. Idealmente, se a comida fosse racionada e cada um consumisse apenas o necessário, a precariedade e o desespero dos níveis inferiores deixava de existir. Mas, como está claro, isto não é uma utopia.
No início de A Plataforma, conhecemos Goreng (Iván Massagué), um prisioneiro que acaba de chegar, por vontade própria, a este inferno selvagem e vertiginoso. Apresenta-se ainda Trimagasi (Zorion Eguileor), o seu experiente companheiro de cela, impaciente pelo fim vindouro da sua estadia.
A caracterização das personagens sofre de um empobrecimento gradual ao longo do filme. Acabam por se tornar mais simbólicas e genéricas, como é o caso de Baharat (Emilio Buale). Contudo, a longa-metragem não peca totalmente por isso. A diversidade de pessoas que ali residem pode justificar a escolha da conduta religiosa e desesperada para esta personagem. Creio que Baharat serve pura e simplesmente como uma força motriz do desenlace, intrépido e obstinado, com vista a superar os obstáculos que à sua missão se opõem.
No primeiro ato, a conceção de Trimagasi assenta no arquétipo do velho sábio e serve como elemento de exposição. O idoso, que tanto encara tudo como óbvio, dá a conhecer as condições do local e ajuda-nos a arquitetar os fundamentos da história.
Quanto mais aprendemos sobre a mecânica da prisão, mais cresce a inquietação e a astúcia para levar a cabo o egoísmo doentio que o rege. É talvez aí que reside a maior adversidade do filme. Recebemos demasiada informação de uma vez só, ou demasiado cedo. A meio, já andamos às voltas, sem termos aparentemente certezas, ou uma pista do ponto a que se pretende chegar. Não obstante, A Plataforma não perde a capacidade de captar a atenção do espectador e de o prender ao ecrã.
Goreng é o nosso ponto de contacto com este universo angustiante e, ao longo da longa-metragem, a sua mentalidade entra em mutação. Das centenas de prisioneiros ali presentes (número apurado no final e portador de um pesado simbolismo), este é o único que, por vontade própria, imerge naquele processo de desumanização. O mais relevante no seu desenvolvimento passa pelo abdicar do seu objetivo pessoal em prol de um bem maior, sem a certeza de que seria realizável. Na ausência imoral de outros possíveis agentes de mudança, vê-se obrigado a agir quase sozinho, perdendo a sanidade ao tentar quebrar a corrente de um sistema viciado e opressor.
Imerso numa visceralidade e num grafismo de dar a volta ao estômago, não é algo que se veja de ânimo leve. Por alguma razão inaugurou a semana do Cine Fantástico y de Terror de San Sebastián. Na ementa surgem, além da egrégia panacota, vários tabus descritos ao pormenor por uma direção de fotografia bem conseguida, entre os quais, o canibalismo. A violência gráfica não cessa até ao desenlace, onde a sobremesa é servida por um enigma onírico.
A improbabilidade do final veio para incomodar muita gente. Contudo, como qualquer distopia, é necessário dar crédito à ficção para entender ou começar a interpretar a mensagem da obra. A essência do filme não reside num pragmatismo confortável, mas nas mais primordiais necessidades humanas: a esperança e o altruísmo.
De todas as formas, A Plataforma surge como um retrato da sociedade atual, que pode ser olhado a nível político e religioso, ou como uma denúncia do paradoxal e exacerbado individualismo vivido em sociedade. É de ressaltar a dualidade dos pratos perfeitamente confecionados e da situação nauseabunda vivida dentro das infindáveis paredes de betão. Um dos parâmetros mais flagrantes passa também pela premissa dos habitantes mudarem de nível todos os meses e, por consequência, tanto estarem na miséria como na riqueza. Ainda assim, o sistema não muda.
O tom sombrio e agoniante desta alegoria contrasta com o objetivo último da obra: a prosperidade no meio da violência e da aparente impossibilidade. É de salientar a modesta produção que deu lugar a um cenário agoniante e eloquente, ainda que minimalista. A par da direção de fotografia que não poupa nos detalhes mais sórdidos da história, atinge-se, sem qualquer dúvida, o abismo vertiginoso e claustrofóbico pretendido. Repleto de simbolismos fomentados ainda pelo desempenho fenomenal do elenco, a qualidade técnica deste filme é, sem dúvida, notável.
Título Original: El Hoyo
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia
Argumento: David Desola, Pedro Rivero
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Emilio Buale
Espanha
2019