Neon Bible é o segundo álbum de estúdio dos canadianos Arcade Fire. Depois do lendário e explosivo Funeral, que é hoje visto como um álbum sagrado dentro do universo Indie e Alternativo, Neon Bible surge mais cerebral e contido.

Voltado para a sociedade que nos rodeia sem nos abraçar, com alusão clara à religião e a algumas bicadas políticas, as letras metafóricas são embebidas por uma energia melancólica, composta por diversos instrumentos e por um reverb pio e cerimonioso. Creio que esta faceta do álbum é reforçada pelo facto de o mesmo ter sido gravado numa igreja remodelada (a pedido do grupo) com o propósito de servir como estúdio ou até, mais imediatamente, pela bíblia da capa e o título do disco.

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É muito interessante olhar para trás, em perspetiva, e perceber o papel deste projeto naquilo que é o percurso global dos Arcade Fire. Sucessor da crueza, sensibilidade e energia desmedida e combativa de Funeral, parece-me muito mais conciso e denso do que The Suburbs, que se perde no brilhantismo e tropeça em momentos que estão no disco a fazer número. Além disso distancia-se da fase mais produzida, dançante e maquilhada que a banda atravessa agora (sendo conveniente frisar a diferença de qualidade de Reflektor e Everything Now, com este último a ser claramente um tiro no pé dos canadianos).

Ponto em comum em todos estes projetos é a sensação de que podem ser brilhantes numa performance ao vivo. E, tendo por base a minha experiência pessoal com a sua música, vou assinalar excecionalmente que a banda é realmente fantástica ao vivo. Pela energia, pelas melodias libertadoras entoadas quase como cânticos, pela quantidade de instrumentos que enchem o palco e, mais recentemente, pelos temas mais dançantes.

E porque é que isto é importante referir? Porque apesar das temáticas obscuras e da densidade poética e emocional das letras sem, musicalmente falando, abdicar de lhes serem fiéis, os Arcade Fire conseguem trazer às ideias mais negras um conforto e uma força impagáveis, capazes de mover montanhas.

O final deste disco é a libertação pelo qual o próprio nos faz ansiar. Sendo mais contido, vai-nos mostrando o que precisamos, e só no-lo dá realmente nos dois últimos temas, tornando-os muito mais imponentes e marcantes.

Alusões ao oceano (a primeira música é um bom exemplo disto) servem como metáfora para a imensidão que é a nossa sociedade e para as profundezas do seu subconsciente negro, com uma força própria aterradora e incontrolável. Esta ideia volta a ser explorada em “Black Wave- Bad Vibrations” numa busca pelo sol, capaz de amedrontar as trevas sem as anular nunca por completo.

Há um quê de desespero na canção, com o sujeito poético feminino a tentar fugir das trevas para o sol (que se supõe que seja o sujeito poético masculino), e com este a dizer-lhe que as trevas acabarão por voltar a ela. Numa espécie de busca por um futuro melhor com o passado a amaldiçoar-nos, o refrão é super intenso, implorando um momento para aliviar e libertar essa tensão, que nunca chega a acontecer, com a música a encaixar imediatamente na faixa seguinte. “There’s a great black wave in the middle of the sea/ For you/ For me

Keep The Cars Running” é o segundo tema do álbum e traz uma energia e uma esperança contagiantes. É um dos momentos altos do disco, com uma mensagem clara (ligeiramente redundante): “Keep the car running”. Num disco sem pontos baixos claros, destacam-se os momentos mais frenéticos, como os coros que irrompem na narrativa em negação e com pena de si própria de “Antichrist Television Blues”.

Um homem à procura de liberdade sem saber sequer que é disso que precisa. Força a filha a uma energia, tensão e pressão que ela pode não querer, orientando a vida dela sem a ouvir, da mesma maneira que Deus o orienta e o controla (ainda que Deus tenha sido criado pelo Homem). Podemos ir mais longe e deduzir que o lado mais contido deste disco tem um pouco a ver com isso, com essa ideia de Deus como um travão que nos impusemos a nós mesmos. Um julgamento constante, uma onda gigante de trevas e do desconhecido, que nos assusta e nos controla.

Versos como “I don’t wanna live in my father’s house no more”, “Working for the church while your family dies” anseiam por uma liberdade que só atingimos em “No Cars Go”. Nesta faixa, o sujeito poético se resolve a ir onde nada nem ninguém mais se atreve a ir. E não só vai, como tenta levar consigo toda a gente. “Little babies, let’s go! / Women and children, let’s go! / Old folks, let’s go! / Don’t know where we’re going”. Pode ser só uma teoria louca da conspiração, mas a sensação temática das letras e das progressões e resoluções musicais de cada tema, fazem-me crer que a penúltima faixa do disco é um hino à liberdade e à irreverência como resposta ao lado oprimido de cada um de nós.

E faria todo o sentido acabar o disco neste tom. Mas o mais interessante de Neon Bible, a meu ver, é o facto de as duas melhores faixas serem as últimas. E de, a meu ver, o disco acabar duas vezes. Quero com isto dizer que se resolve de duas maneiras diferentes. Tem duas músicas que soam claramente a temas finais. Duas respostas, completamente distintas, que acabam a dizer-nos mais ou menos o mesmo.

Finalmente, “My Body is a Cage” é o apogeu do disco. A nível lírico, a nível de intensidade, de dramatismo, de puro génio musical. Tudo. A presença imponente do órgão acompanha a poesia. “My body is a cage / We take what we’re given / Just because you’ve forgotten / That don’t mean you’re forgiven”.

Com o épico final, onde se resolve toda a tensão acumulada, a explosão derradeira, em todo o seu explendor e força, a verdadeira ascensão aos céus, num pedido necessário que a música responde, aquilo que o disco procura o tempo todo. “You’re standing next to me / My mind holds the key / Set my spirit free / Set my body free

Neon Bible é um álbum incrível, menos espetacular que o seu antecessor e menos notório que o seu sucessor, mas, para mim, o trabalho que melhor define uma das melhores bandas dos últimos vinte anos. Uma coletânea de canções fantásticas e obscuras que resulta em dois finais simplesmente arrepiantes.