Loucura, de Mário de Sá-Carneiro, propõe-se ao “estudo de uma singularíssima psicologia”. Uma exploração, vincada pela dúvida, de todos aqueles que pensam diferente do convencional. Um apelo à explicação do inexplicável.
A obra de 1912 retoma à morte de Raul Vilar, um escultor conceituado da época. De acordo com o autor, esta foi muito lamentada – “escreveram-lhe a biografia, catalogaram-lhe as obras e concordaram unicamente em que o seu prematuro falecimento havia sido uma grave perda para a arte nacional.” No entanto, e correspondendo à primeira crítica amarga da obra, uma lamentação volátil: “hoje, poucos se lembrarão já do pobre Raul”, a não ser, é claro, Mário de Sá-Carneiro, amigo de longa data do escultor.
Durante anos e anos, fomos confrontados e participamos na discussão da efemeridade da vida. Ao longo desse tempo, presentearam-nos com uma visão romantizada: alguém com grandes feitos na humanidade, independentemente da sua área de intervenção, será para sempre lembrado, mesmo após a sua morte. As primeiras páginas de Loucura contrapõem essa realidade: tentam “explicar um inexplicável suicídio” e “desafazer estúpidas fantasias” encontradas para justificar tal opção.
Contudo, antes de prosseguirmos com algumas das suas eventuais conclusões, deveremos dar a conhecer, em mais pormenor, estas duas figuras. Segundo o autor, o próprio e Raul Vilar eram a antítese em pessoa. Além das suas oposições físicas especificadas na narração, divergiam também na forma de ver o mundo. No entanto, como o ditado popular diria, “os opostos atraem-se”, e é assim que os homens se tornaram os melhores amigos.
Em pouquíssimas páginas, o autor explora logo três dos temas sobre a condição do mundo, tema que guiava as suas discussões com o amigo. A morte é ma das primeiras reflexões. Raul Vilar dizia que gostava que todos os outros seres vivos na terra morressem, “experimentar o medo de me ver completamente só, num mundo cheio de cadáveres”. Apesar da absurdidade que as suas palavras possam transmitir, a verdade é que a sua premissa vai de encontro com o desejo da grande maioria das pessoas: o querer saber de como será a morte, associando-a à possível solidão.
Segue-se a noção de tempo. Mário de Sá-Carneiro admite ter usado a escrita, nos seus tempos de juventude, como um entretenimento. Será através desta visão da escrita que Raul afirma repugnar o falso prazer do entreter, referindo que a felicidade se encontra na capacidade de entretermos o nosso pensamento com mais do que o simples ato de pensar. Esta filosofia de vida do escultor vai de encontro com tantos outros autores, como Fernando Pessoa.
O amor é o terceiro e último tema abordado. Raul que, até ao momento, só via o amor como “uma necessidade orgânica”, pensa também que ao prender-nos a alguém estamos a contrariar as exigências das nossas vontades. Além disso, questiona-se sobre as obrigatoriedades impostas no casamento, a fachada de um matrimónio, marcada pelo preenchimento de um papel oficial, e a convenção da lua-de-mel, que é, nada mais nada menos, do que duas pessoas colocadas num “cenário inexpressivo de paredes alheias, em vez do lar”.
Apesar das suas dúvidas sobre a função da arte, também o personagem se torna artista. Neste caso, num escultor. No entanto, define a sua atividade como algo mais que a criação de um objeto e mais do que um mero entretenimento.
Durante todas estas intervenções pensativas sobre o estado do mundo, a possível personagem de Mário de Sá-Carneiro foi ponderando o nível de loucura do seu amigo. Tentou, enquanto “profissional da observação” e amigo íntimo, “achar o x da intricada equação”. De qualquer forma, também ele se questionou sobre o que é a loucura e quais as suas implicâncias na vida social. Acaba por concluir que a vida é feita de convenções, referindo que se um dia a sorte favorecesse os loucos, estes é que passariam a ser os ajuizados.
Ao longo das 60 páginas que compõe Loucura, as personagens vão sofrendo transformações na vida social e no modo de perspetivar o mundo. Daí, algumas das críticas feitas nas suas primeiras páginas, acabam por perder força. No entanto, esta realidade corresponde à prova da capacidade transformadora e adaptativa do ser humano.
Desde o início do livro que conhecemos o desfecho desta história: um suicídio. A comunicação social está proibida de abordar este tópico, por isso poderíamos dizer que tais referências deveriam ser censuradas pelo lápis azul. Para mim, deveria haver mais escrita aberta sobre o assunto, numa tentativa (correspondente à do autor) de perceber os seus verdadeiros motivos.
Título Original: Loucura
Autor: Mário de Sá-Carneiro
Editora: Publicações Europa-América
Género: Ficção
Data de Lançamento: 1912