O terceiro filme de Eliza Hittman, Never Rarely Sometimes Always, estreou a 24 de janeiro, no festival Sundance. Trata-se de um drama sem melodrama e, mais do que uma simples premissa, revela um estudo atento sobre o retratar de personagens.
A sinopse conta tratar-se da história de uma adolescente, oriunda de um pequeno condado rural da Pensilvânia, que descobre estar grávida e procura assistência médica em Nova Iorque, com a ajuda da prima. Todavia, embora relativamente elementar, a história deste filme é, além de um retrato dos perigos e das imoralidades que uma mulher enfrenta desde as mais precoces fases da vida, uma crítica social contada de uma forma única, crua e transparente.
A longa-metragem começa num cenário escolar. Vemos um espetáculo de talentos onde todos atuam alegremente, com recurso a dança e a playback, à exceção de Autumn Callahan (Sidney Flanigan), que apresenta uma cover acústica do tema “He’s Got the Power”, da banda The Exciters. É a única vez, durante todo o decorrer da narrativa, que a adolescente de 17 anos se expõe de maneira tão vulnerável. Deteta-se, já aqui, a sinceridade que apuramos mais tarde ser-lhe característica. A par da letra da canção, a angústia que traz na voz ecoa no auditório e arquiteta a premissa do filme.
A cultura doentia e machista revela-se desde os primeiros minutos e consagra-se durante todo o filme. Seja pelo rapaz infantil que interrompe a atuação de Autumn, ou pelo vergonhoso comportamento de indivíduos completamente desinibidos nos transportes públicos, todos os detalhes da história compõem a realidade com que todas as mulheres se deparam no dia-a-dia. Reduzidas a objetos, vemos a predação sexual circundante representada ainda pelo cliente inoportuno na caixa de supermercado, que se aproveita de uma conversa casual para manifestar intenções inapropriadas que incidem na pedofilia. Também o contexto familiar se mostra machista e patriarcal: o pai, que renega as responsabilidades inerentes à parentalidade e, por consequência, torna impossível a conexão com as filhas.
Sem a comodidade e a impessoalidade das grandes cidades, a protagonista recorre a uma duvidosa “Clínica Feminina” local para fazer um teste de gravidez. O resultado positivo chega como ponte para a intimidação: vê o seu direito de escolher reprimido, tanto pela apresentação de um documentário duvidoso e pouco científico, como pelo testemunho maternal e sufocante da profissional que a atende.
Na ausência de assistência médica decente e privada de poder exercer direitos sobre o seu próprio corpo, Autumn vê-se obrigada a recorrer a métodos perigosos com vista a um aborto autoinduzido. O “milagre da vida” rapidamente se torna uma ameaça à sua integridade e bem-estar. Encontra apoio na prima e colega de trabalho, Skylar (Talia Ryder), e juntas rumam a Nova Iorque. No entanto, o plano de uma viagem de ida e volta no mesmo dia vai por água abaixo com a evidência da falta de precisão médica da pequena clínica local. Obrigadas a ficar durante três dias ao abrigo do improviso na azáfama nova-iorquina, as decisões que rapidamente tomam mostram-se instintivas e alimentam o realismo de Never Rarely Sometimes Always.
Cair-se-ia facilmente no erro de tornar as personagens demasiado semelhantes por terem um objetivo comum. Porém, é de admirar o facto de que ambas se mantêm fiéis à sua distinta maneira de ser, sem descorar, por um segundo, a cumplicidade de uma amizade incondicional. É também a primeira vez que ambas as atrizes se estreiam no grande ecrã e as performances são totalmente genuínas.
Eliza Hittman conta uma história com pouco diálogo e procura a verdade no semblante das atrizes. A par da cinematografia orgânica, que avigora o realismo durante todo o filme, esta produção indie é de uma crueza que não se vê sempre e deve-se, em grande parte, ao notável registo observacional das filmagens.
Para quem não sabe de que se trata a longa-metragem, o título pode parecer bastante poético e cair num figurativismo algo romântico. Porém, a pano cai quando nos apercebemos que “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” são as respostas a um questionário de escolha múltipla sobre experiências potencialmente marcadas pela violência sexual, física ou psicológica. A hesitação em responder a perguntas nunca antes feitas, o pânico em reviver situações traumatizantes, a falta de informação e a confusão consequente da mesma, a dúvida e a desconfiança em aceitar ajuda são perfeitamente interpretados por Sidney Flanigan e tornam a cena num dos momentos mais brilhantes.
Embora o ritmo do filme se mostre desajustado algumas vezes, é incrível que a narrativa não se foque no que trouxe Autumn a este momento de crise, mas sim no processo de a superar. A sequência de imagens final denota a subtileza da sensibilidade cinematográfica sob a qual o trabalho foi produzido. Na viagem para casa, não só a protagonista consegue finalmente adormecer, como também se apresenta o final na fase mais luminosa do caminho.
O recurso à música, não só em escassos e específicos momentos na banda sonora, como também na vida de Autumn, encara-se como um dos mais bonitos e bem construídos indicadores da sua resiliência e jornada. A música do início, que serve de base a toda a problemática, e o karaoke num dos pontos mais frágeis do estado emocional de da rapariga, que serve tanto como distração como porto de abrigo, destacam a perspicácia quanto aos pormenores.
Mesmo que seja, originalmente, um olhar sobre o sistema opressor americano no que toca à liberdade das mulheres, Never Rarely Sometimes Always é extensível à comunidade feminina do mundo inteiro, irrefutavelmente dotado de uma urgência documental. Reflete, sem dramas desmedidos, a pressão colocada sobre a vida das mulheres e os perigos que muitas vezes enfrentam por pura irracionalidade alheia.
Título Original: Never Rarely Sometimes Always
Direção: Eliza Hittman
Argumento: Eliza Hittman
Elenco: Eliazar Jimenez, David Buneta, Christian Clements
EUA | Reino Unido
2020