Dizem que as crises que assolam o mundo fazem emergir o pior da humanidade. Se isolarmos o vírus ao campo da cultura, percebemos muito mais do que isso. Não precisamos de evidências científicas para comprovar aquilo que se passa em Portugal e no mundo. Um mês depois do início da crise no país, olhemos o gene da cultura através do microscópio.
Teatros, salas de espetáculos e diferentes espaços culturais foram os primeiros a fechar devido à nova pandemia. À boca de cena, quase que conseguíamos prever o final desta peça trágica: espetáculos cancelados, companhias abandonadas e artistas desamparados. Conhecemos a realidade da cultura em Portugal e não pode ser assemelhada à de outros tantos países por essa Europa fora, que sempre souberam transformar o setor num importante pilar da economia. E atualmente, olhando para trás, a cultura perdeu contra o vírus em matéria de finanças… Ninguém adivinhava, no entanto, o desfecho social desta peça.
Sentados no nosso sofá, sem moralismos ou paternalismos, todos percebemos a importância dos artistas nas nossas vidas. Deixamos de frequentar salas de espetáculos para que os artistas invadissem a nossa própria sala e deixamos de pagar bilhete para usufruir do espetáculo de teatro da nossa companhia favorita. De norte a sul do país, os agentes culturais mobilizaram-se por uma causa – a de não limitar o acesso à cultura. Quando o estado de crise terminar, voltamos às nossas vidas. No entanto, que importância daremos nessa altura a quem nos ajudou a superar o desespero do isolamento?
O Ministério da Cultura já se pronunciou e vai ajudar os artistas que perderam com esta situação. Num Estado de direito, não se esperava outra coisa. Várias companhias viram os seus salários assegurados, quer por teatros, quer por empresas privadas. Por todo o país, ouviam-se as vozes dos artistas, técnicos, estruturas e trabalhadores independentes da área. O setor, que por si só já é vulnerável, tinha dois destinos: ou caía ou utilizava esta dificuldade como uma oportunidade.
Numa espécie de mobilização social, os artistas souberam tirar o maior proveito através de concertos, festivais online, declamações de poesia e transmissão de peças na internet. Tudo isto de forma gratuita pela saúde mental de quem passava os dias em casa. Fizeram companhia, mudaram rotinas e revolucionaram o espaço digital, sem receitas de bilheteira e sem palmas.
Pelas varandas de todo o mundo, cidadãos comuns recorreram à música para se afastarem da nova realidade. “A arte existe para que a realidade não nos destrua”, dizia Nietzsche, que estaria orgulhoso numa época em que o seu pensamento nunca fez tanto sentido. Nestes tempos pandémicos, não vimos só a maravilha que é viver em comunidade. Testemunhamos, também, aquilo que já devíamos ter percebido há muito tempo: não existe cidadania ativa sem um pedaço de cultura na nossa vida.
É por isso que a Covid-19 nos trouxe, paralelamente, uma pandemia do bem. Neste trimestre, mais do que nunca, falou-se em cultura nos órgãos de comunicação social, nas páginas privadas dos internautas e nas nossas videochamadas. Marcamos encontros para ouvir um artista e quisemos muito ver aquela peça que perdemos no teatro.
Quando tudo isto terminar, os espaços culturais voltarão a estar abertos. Se agora esperamos pelos artistas no nosso sofá, a partir desse momento estarão eles à nossa espera em cima do palco. E um agradecimento desse tipo nunca foi tão fácil.