Fargo foi lançado há 24 anos e continua a marcar presença nas listas dos melhores filmes já lançados. Em 1996, os irmãos Coen marcaram presença nos grandes ecrãs com uma trama que conjuga na perfeição as virtudes dos géneros de crime e de humor negro.

Um vendedor de carros, Jerry Lundegaard (William H. Macy), engendra um esquema que o pode salvar da bancarrota. A ideia é contratar dois criminosos para raptar a mulher e pedir 80 mil dólares, metade para ele, metade para os dois delinquentes, de resgate ao sogro.

Fargo

Em primeira instância, ao tomar conhecimento do plano de Jerry pela sinopse do filme, é natural ficar com a ideia de se tratar de alguém egoísta e arrogante, disposto a comprometer a segurança da mulher para ganho próprio. No entanto, assim que o homem começa a falar com os dois marginais que contratou, transparece de imediato que tipo de pessoa é. Fala com um tom de voz comicamente doce e trémulo, como quem pede constantemente perdão por existir, sorrindo no final de cada frase. Movimenta-se com a sensação inerente de nervosismo e ansiedade, e com uma necessidade quase irritante de satisfazer toda a gente.

Após a breve conversa, o plano que engendrou começa a tornar-se quase cómico, como se fosse descabido alguém como ele considerar sequer fazer algo do género. Enquanto audiência, a sensação de repulsa lentamente se converte em pena.

Possivelmente por este motivo, Jerry não é respeitado pela maioria das pessoas com quem cruza caminho. A sua falta de confiança dá espaço ao sogro para descorar as suas palavras, como se de uma criança se tratasse, e os dois marginais não têm qualquer problema em demandar cada vez mais compensações. O protagonista nunca contesta quando o contradizem, mantém a mesma falsa e controlada boa disposição infantil, encurralando a todo o custo a sua fúria por detrás de fatos castanho claros impecavelmente engomados e gentis olhos azuis.

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Jerry é ainda completamente ingénuo em relação à escala que o seu plano tomou, destinado a correr mal desde o início. Para além disso, ainda que tenha noção de ser o epicentro de uma cadeia de tragédias cujo preço a pagar são vidas humanas, não perde a forçada compostura positiva e a preocupação controlada, tentando não causar mais alarmismo e atenção para si. O contraste das situações sangrentas com esta disposição falsamente alegre dificulta à audiência saber se é suposto levar a personagem a sério ou não, tornando as suas ações gradualmente mais imprevisíveis.

Esta sensação é carregada durante todo o filme por todas as personagens, incluindo a inacreditavelmente calma agente da polícia que, na fase final da gravidez, consegue ajoelhar-se para investigar uma cena de crime, conduzir sozinha até uma cidade diferente e investigar o caso a solo. O seu sotaque é de tal forma tão carregado e a personalidade tão carinhosa, quase maternal, que somos levados a acreditar que Frances McDormand fala realmente desta forma. No entanto, na realidade, a atriz age de forma muito mais espirituosa e cínica. Por algum motivo este papel lhe valeu um Óscar.

O enredo de Fargo pode ser, em determinadas alturas, um pouco lento, com uma ou duas cenas que me fizeram questionar qual o propósito de existirem, abandonadas e sem qualquer seguimento. Contudo, ao alternar entre diferentes perspetivas, a história ganha uma graça própria, por vezes taciturna, com todo o seu humor e drama combinados com personagens intrigantes.

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Um dos aspetos que merece atenção redobrada é a cinematografia, dirigida por Roger Deakins, recentemente vencedor de um Óscar pelo seu trabalho em 1917. Jerry é normalmente emoldurado pelos ombros ou mais perto. Este tipo de corte acentua a intensidade das cenas: o espectador pode sentir-se quase encurralado pelo olhar ou pelas emoções da personagem, tendo em conta que a proximidade do ator com a câmara deixa pouco mais espaço para onde olhar, apenas a expressão de desgraça deste homem. Tal como ele, não temos por onde escapar.

Uma das cenas visualmente mais marcantes acontece depois de o sogro do protagonista lhe recusar dar a quantia de dinheiro que cobriria por completo as suas dívidas. Jerry acaba por sair do edifício e vemo-lo de cima, a dirigir-se ao carro. A tela é completamente coberta pelo branco da neve e a única cor é a sua figura pequena e insignificante, ilustrando a solidão a que foi relegado, completamente abandonado à sua sorte. Para além disso, os vasos simetricamente colocados no espaço quase encurralam o homem na própria miséria.

Ainda que Fargo seja, por vezes, conflituoso em relação à seriedade com que devemos encarar as personagens, é uma pequena relíquia cómica e dramática. Combina perfeitamente e subtilmente estes dois géneros através de personalidades peculiares mas fortemente vincadas nas personagens. Sem dúvida, um clássico a ver.