Em 2009, Gaspar Noe trouxe aos ecrãs um espetáculo espiritual de cores e sinuosidades sobre o derradeiro destino da condição humana. Viagem Alucinante é o confrontar da morte não como algo a temer, mas como um fenómeno que puramente é.

Oscar, interpretado por Nathaniel Brown, é um americano que vive com a irmã, Linda (Paz de la Huerta), num pequeno apartamento imerso na azáfama néon de Tóquio. Com um interesse peculiar pelo submundo psicadélico que a droga traz à tona, o protagonista leva-nos, numa perspetiva em primeira pessoa, a uma viagem de DMT – o psicadélico mais potente já descoberto, produzido em largas quantidades pelo corpo humano quando morremos.

Viagem Alucinante

Rapidamente divagamos pela icónica e vertiginosamente ritmada sinfonia visual de cores de Viagem Alucinante. As formas dançam, expandem-se e entrelaçam-se, até deixarmos de sentir os contornos do nosso corpo. Mas a realidade telefona e, do outro lado do anticlimático toque de telemóvel, está Victor (Olly Alexander), que precisa de droga e não pode ir buscá-la.

Se a chamada de Victor se mostrou duvidosa e pouco cortês, a sua postura no Void, bar onde se realiza a transação, não tarda em descortinar o verdadeiro propósito do pedido. Pede desculpa, apavorado, e a polícia entra de rompante. Fugaz, Oscar corre para a casa de banho e nós com ele. Mais do que estabelecer uma conexão com esta personagem, entramos na sua pele. De repente, tentamos livrar-nos de um saco de substâncias que nos encerrariam atrás das grades. O autoclismo não funciona, ameaçamos chamar a embaixada e rezamos para que aquela armadilha não passe de um sonho infeliz. Até que uma bala nos atravessa o corpo.

Esmorecemos devagar. A morte revela-se dúbia: não sabemos se é um pesadelo, se é transe ou se é a vida a escapar pelos dedos das mãos manchadas de sangue. Em terceira pessoa, somos quase intrusos nesta viagem interior. Oscar não passa agora de um vulto que o seu espírito observa, em analepse, à medida que revisita tudo aquilo que o levou ao vazio.

Viagem Alucinante

Num delírio onde as histórias se entranham umas nas outras, a alucinação lateja durante todo o filme com o auxílio dos exaltados movimentos de câmara. Morte, sexo, amor, droga, maternidade, sangue e vários tabus são explorados com a típica e provocadora desinibição de Noe. Não cessando a inovação enquanto cineasta, as filmagens arrojadas vêm abalar o cinema confortável e fácil de assistir com uma irreverência técnica invejável.

Sem poupar nos efeitos visuais, debatemo-nos logo nos créditos iniciais com a manifestação caótica e quase supérflua de todas as cores e fontes de letra possíveis. No decorrer da trama, os fenómenos luminosos que a mente humana perceciona no auge da imaginação – ou, neste caso, da alteração da consciência –, são traduzidos visualmente com um detalhe estonteante.

O design sonoro vem alimentar o estado alterado de Oscar e fomenta, entre outras vivências, o trauma de uma perda irrecuperável. No início, o solilóquio que ecoa permite-nos imergir no transe psicadélico do protagonista. Durante o filme, os vários sons abstratos evocam a perceção de inúmeros patamares diegéticos, aludindo à multiplicidade de dimensões latentes na mente humana. Algo desconcertante, a subversiva banda sonora vem estabelecer uma turva relação com o recurso à droga para escapar aos tumultos vividos em criança.

Viagem Alucinante

A iluminação obscura evidencia a incerteza levada a cabo até ao final da longa-metragem. Há algo em constante mutação e desassossego. Pairamos sobre o presente taciturno e o passado irrevogável, num turbilhão lancinante reduzido a pó. O agora desintegra-se e queima lentamente no fundo de uma urna. Feito de extremos, Viagem Alucinante faz do espectador um pêndulo e, num compasso de cortar a respiração, leva-nos dos esgotos ao céu, dos dias que correm àquilo que os arquitetou, da morte ao início da vida, da estabilidade ao descambar de tudo o que se tomara por certo.

Cansado de que a morte seja encarada como uma coisa má, como revelou ao The Irish Times, e com o auxílio de uma equipa oriunda de quatro países diferentes, Gaspar Noe veio explorar o destino final do ser humano com uma abordagem insurgente e quase surreal, numa alucinação cinemática que entorpece e impressiona.