Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro, estreou a 12 de outubro de 1989 em Portugal. Como “aquele cotão, que até se entranha nas vassouras”, a vontade de trazer poesia à alma de quem a reconhece pelos turvos caminhos do cinema português entranha-se bem fundo nas vísceras do filme.

“Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: «Coitadinhos!…»”. Assim, veio ao mundo em 1989, a primeira das três longas que formam a “Triologia de Deus”, que foi para muitos o Magnum Opus de um dos melhores cineastas Portugueses.

A escrita impiedosamente cuidada de César Monteiro une-se a uma vontade de, mais do que dirigir, puxar o lustre ao que de melhor têm para oferecer os atores e, acima de tudo, as pessoas “atrás das máscaras”. A obra cinematográfica é um retrato fielmente Português que “só visto, contado não se acredita” da “bicharia que para aí anda”. Recordações da Casa Amarela trata essencialmente uma jornada quase documental da gestão de um estado de simplicidade.

Recordações da Casa Amarela prima por conseguir equilibrar uma mensagem tão simples como profunda e pontuá-la de momentos de catarse cómica ridículos, por vezes infantis, mas puros e essenciais para a “receita” de César Monteiro. São tropeções nas esquinas dos móveis pelo claustrofóbico quarto duma vida, com espreitadelas ocasionais por um corredor de tentações, que narram uma história de lucidez na loucura e loucura na lucidez.

Mas, mesmo quando “pouco espaço tem o quarto”, é o génio de quem consegue contar as alucinantes desventuras dum “aristocrata dos pobres” que o ocupa e transcende. Monteiro nutre um carinho especial pelas coisas simples, como as vivências de tasca e de café ou o empréstimo dum rádio entre colegas de casa em lenta decadência, com especial cuidado para que a dona não repare nos gastos elétricos do aparelho. São estes traços humanizantes que conferem um brilho muito especial a filmes como este, um brilho muito difícil, senão impossível, de reproduzir, e que não encontramos em mais lado nenhum.