Em 1992, Mary Ellen Amos surpreendeu o mundo com o primeiro álbum sob o pseudónimo Tori Amos. Depois de um projeto falhado, Y Kant Tori Read, Little Earthquakes é uma marca importantíssima na carreira da pianista e cantora.

Uma verdadeira obra de arte, chocante, enigmática, intensa e vibrante. Temas como a sexualidade, o amor e os abusos são tratados sem pudor, com inteligência, espírito crítico e honestidade, numa paleta de canções muito bem escritas.

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Revolvendo as suas músicas sobre o casamento único entre piano e voz, tão estranhamente pouco comum (ainda hoje) no paradigma do Rock e da música Alternativa, Amos mostra todo o seu talento enquanto cantautora e artista através de composições fortes e apaixonantes. A pianista norte-americana relembra-nos que “doesn’t take much to rip us into pieces” na faixa homónima do disco, naquilo que constitui um final assombroso a esta montanha russa de emoções.

Fazendo passar as mensagens sem eufemismos, mas com muitos simbolismos e através de imensas e distintas referências culturais, a artista mostra-se assertiva, articulada e penetrante. Fazendo-se valer da sua habilidade enquanto instrumentista, com o piano a sentir-se como quase que uma extensão dela própria, Tori dá destaque às palavras com dinamismo e criatividade. Uma instrumentalização densa, com muitas cordas, além da banda standard do Rock, torna o projeto mais envolvente e dá-lhe uma imponência diferente.

O álbum abre com “Crucify”, uma faixa poderosa que fala do que nos fazemos sentir a nós próprios. Reflete também o sentimento de culpa e as tentativas constantes de nos sentirmos aprovados por terceiros, presos a estereótipos e ao politicamente correto.

O paralelismo feito com a força opressora da religião sobre as pessoas é uma constante ao longo do disco e isso está muito presente em “Crucify”. Versos como “got enough guilt to start my own religion” devem ser interpretados como críticas fortes à natureza abusiva e controladora da religião.

Em “Girl”, os choros da guitarra elétrica dão um caráter mais dramático e meloso à música, com a bridge que se segue ao segundo refrão a ser o clímax do tema. Esta particularidade repete-se na faixa seguinte, com as belíssimas harmonias vocais a darem corpo a um momento lindíssimo, numa canção lindíssima também.

A intensa e tenebrosa “Precious Things” é um dos pontos altos do disco. A libertação sexual e a luta contra o “purismo” da igreja são temáticas fulcrais da canção. A mentalidade feminista da cantora é clara em versos como “So, you can make me cum / That doesn’t make you Jesus”. O final frenético e imponente é realmente arrebatador.

O vocativo da balada “Winter” é o pai de Mary. A delicadeza do refrão emotivo, onde a cantora relembra com carinho os conselhos do seu progenitor alastra-se pelo resto da canção. Proporciona-nos uma espécie de homenagem nobre a alguém importante. Engraçado que, na música “Mother”, por sinal também excelente, a figura materna seja mais impessoal, ainda que seja esse o nome da canção.

O sarcasmo ritmado de “Happy Phantom” contrasta com o pouco movimento que sentimos em “China”, onde Tori Amos faz uma analogia entre o seu parceiro e o país oriental pelo secretismo que associa aos dois. A estes dois temas segue-se o erotismo e a sensualidade de “Leather”. As características são, no entanto, insuficientes para “salvar” esta sequência de canções de serem as menos bem conseguidas do disco, na minha opinião.

Em “Tear in your hand” há uma sensação libertadora na forma como é abordado o fim de uma relação, apesar da curiosa nostalgia que contrasta com esta visão. Segue-se então a aterradora “Me and a Gun”. A artista canta a capella sobre a experiência pessoal traumática (real) de ter sido violada e ameaçada de morte por um homem, depois de uma atuação num bar. Apesar de não ser um momento musical importante, a falta dos instrumentos acentua ainda mais as palavras proferidas, dando-lhes grande impacto.

Little Earthquakes não é um disco perfeito. Mas é honesto. É real. É tocante a vários níveis. É um conjunto de partilhas e desabafos arrebatadores e inteligentes que ficaram imortalizados no tempo, como pedacinhos únicos e cristalizados da vida de um ser humano. Com o seu primeiro disco, Tori Amos oferece o mais artístico que há em nós, a verdade.