Humberto Gomes, jogador de andebol português que chegou a representar a Universidade do Minho, vai abandonar a cidade de Braga para enfrentar um novo desafio no Póvoa AC. O atleta mais velho do último Campeonato da Europa, com 42 anos, formou-se no ABC/UMinho e representou o clube nas últimas dez épocas.
A paixão pelo andebol
Para Humberto Gomes, o andebol foi uma paixão à primeira vista. O atleta esteve emigrado na Venezuela com os pais até aos dez anos de idade e diz que, na altura, não sabia o que era o andebol. Quando chegou a Portugal, uma tia convidou-o a assistir a um jogo de um primo que praticava a modalidade e, a partir desse momento, começou o seu interesse. Mais tarde, no 7.º ano de escolaridade, proporcionou-se praticar andebol no desporto escolar. O resto… é história: “A partir daí nunca mais larguei esta paixão”, contou.
Quando questionado sobre o porquê de ser guarda-redes e não ter escolhido outra posição, Humberto explicou que, apesar de serem muitos alunos nos treinos de desporto escolar, ninguém queria ir à baliza. Um dia, Humberto voluntariou-se: “Ele [o treinador] deve ter achado que eu tinha algum jeito. Também gostei muito da experiência noutras posições, mas realmente foi na baliza que eu mais gostei de estar”.
O guarda-redes assumiu que nunca pensou em desistir. Contudo, admitiu ter havido uma altura crítica na sua vida. “Foi quando entrei na faculdade, já há bastantes anos, na Universidade do Minho. Eu tomei a decisão de apostar mais no andebol e encostar um bocado os estudos e, nesse preciso ano, fui para um clube em que deu tudo errado. Eles não pagaram, a equipa desmembrou-se no final da época e eu fiquei um bocado à nora se valia a pena continuar a apostar”, desabafou.
Apesar do mau momento vivido, que reconheceu ter sido “o único em que realmente custou um bocadinho”, a chama do andebol continua bem viva. “Isso de deixar de jogar ou abandonar ainda não me passou pela cabeça”, afirmou.
O futuro passará pelo andebol?
Este ano, Humberto decidiu lançar-se num novo projeto, que não inclui a continuação no ABC/UMinho. “Abracei outro projeto no Póvoa AC, porque chegou a altura de pensar no meu futuro e de começar a trabalhar realmente na minha área”. Apesar de já ter trabalhado durante cerca de três anos em Engenharia Civil, o atleta disse que agora “vai ser mais a sério”.
Humberto não descarta a possibilidade de vir a treinar equipas de formação de andebol. A razão é simples: “Eu tenho esta paixão que nasceu por volta dos meus 12 anos e que me tem acompanhado até aos 42. São 30 anos em que eu vivo o andebol. Para mim, não faz sentido cortar radicalmente o andebol da minha vida quando deixar de jogar, porque iria custar-me muito e não iria ser feliz”.
Por ser bastante exigente consigo mesmo e com os outros, o que por vezes cria conflito, o internacional português acredita não ter perfil para ser treinador principal de uma equipa sénior. Em contrapartida, imagina-se como treinador de guarda-redes ou das camadas jovens: “Eu gostava muito de treinar só guarda-redes, pegar nos miúdos desde mais jovens e tentar guiá-los até chegarem aos seniores. Eu quero fazer isso. Agora, se vai ser possível, só o futuro dirá”.
A passagem pela Universidade do Minho e o desporto universitário
Humberto lembrou os tempos em que estudou na Universidade do Minho como uma experiência muito positiva: “Ajudaram-me o máximo possível, principalmente nestes últimos anos. Contribuíram para que eu conseguisse acabar o meu curso, porque não é fácil deixar de estudar durante dez anos e recomeçar com 32 – métodos de estudo e concentração, quer se queira quer não, vão-se perdendo”. Apesar de terem sido anos complicados, uma vez que tinha que gerir a vida em função do desporto, o atleta bracarense lembra os títulos em que contribuiu para a Universidade, as boas amizades que fez durante o caminho e também a ajuda que lhe foi dada.
A nível universitário conseguiu títulos nacionais, europeus e até o de vice-campeão do Mundo. Um ambiente, portanto, que deixa saudades: “Foram anos espetaculares”, relembrou. Contudo, admitiu que eram ambientes diferentes. Enquanto que a nível profissional tinha que estar todos os dias concentrado nos treinos, a nível universitário havia mais convívio social. “No final das épocas tínhamos os Europeus e Mundiais universitários e claro que íamos com vontade de ganhar na mesma, só que talvez a disciplina e a concentração não eram tão exigidas”, revelou.
Recordando o Mundial Universitário de 2000, onde teve a primeira experiência pela Seleção Universitária, o guardião garantiu que lhe ficará para sempre na memória. “A nível individual correu-me muito bem e, a nível coletivo, conseguimos ir à final contra tudo e contra todos, porque ninguém pensava que nós podíamos lá chegar”, contou.
O jogo da final, realizado na Covilhã, foi “bastante curioso”. “Estávamos a perder no intervalo por oito ou por sete, o pavilhão estava completamente cheio e nós, não sei como, conseguimos dar a volta ao marcador e empatar o jogo. Fomos a prolongamento, ninguém estava à espera, o pavilhão completamente louco – e depois, infelizmente, perdemos no último lance e perdemos por um”, recordou. Apesar da derrota, o atleta considera que foi uma experiência fantástica, por ser em casa e pelo pavilhão estar cheio.
A carreira longa e atípica
Na sua história profissional ficou famoso o jogo na Taça de Portugal, em 2015, em que defendeu o último lance (um livre de sete metros) e garantiu a vitória do ABC/UMinho. “É o lance que qualquer guarda-redes sonha. Chegar ao fim, depender de ti e tu seres bem-sucedido, foi um momento fantástico que guardarei na minha memória para o resto da minha vida. Felizmente, ajudei o ABC e a minha equipa a conquistar essa Taça de Portugal e ter o mérito de conseguir defender esse livre de sete metros é uma sensação única que não tem descrição sequer, porque é fantástico”, relembrou.
Para se preparar para os jogos, Humberto revelou que, com a idade a avançar, tenta ter mais cuidados com o corpo: dormir o máximo de horas possível, não sair à noite, ter uma boa alimentação e fazer musculação, de forma a conseguir prever as lesões e estar melhor fisicamente. Para além disso, ajuda a experiência que já tem e a visualização de vídeos das equipas adversárias.
Em 2016, ao serviço do ABC/UMinho, Humberto Gomes terminou vários jogos com uma eficácia a rondar os 36% nas defesas, mas não há grande segredo para o feito. “Há jogos e jogos. Há jogos em que nem se toca na bola e há jogos em que podem rematar de qualquer maneira que nós defendemos tudo.” O atleta afirmou que teve a sorte de no clube minhoto ter tido um treinador de guarda-redes que o motivava e que, talvez por isso, também o ajudou a ter boas prestações individuais. E acrescentou: “Se não fosse ele, se calhar, tinha-me desleixado em alguns treinos e isso ia-se notar nos jogos. Mas acho que 2016 foi um ano em que todos trabalhamos afincadamente e eu contribuí e todos contribuímos no nosso melhor para conseguirmos as vitórias”.
O guarda-redes de 42 anos esteve ao serviço de vários clubes. Referiu que o São Bernardo é um clube com bastante mística e que, por isso, se assemelha ao ABC/UMinho. No entanto, as condições não eram tão favoráveis. O CF “Os Belenenses” abriu-lhe a porta para os grandes clubes, tendo estado lá por três épocas. Na sua opinião, o Sporting CP foi o “auge”, onde os jogadores sentiam-se realmente profissionais e tinham todas as condições necessárias. Relativamente ao ABC/UMinho, reconhece que é especial, considera o clube uma família, mas que, infelizmente, neste momento não está a passar pela melhor fase em termos de condições. “Esperamos que consiga dar a volta”, deseja o agora ex-jogador do clube.
O atleta frisou que pautou a sua carreira por ser exigente com ele mesmo, mas que nem sempre isso era um aspeto positivo. Mesmo no final dos jogos em que obtinha eficácias por volta de 36% e as pessoas o congratulavam, admitiu que nem sempre via a parte boa e ficava a pensar nos golos sofridos que podia ter evitado.
A humildade é algo que caracteriza Humberto Gomes, que assumiu que as boas prestações são mérito dele, mas que também dependem da performance dos colegas: “Se eles não ajudarem, podes ser o melhor guarda-redes do mundo, que não vais conseguir defender as bolas”. O atleta sublinhou que o trabalho em equipa é essencial e que só assim se conseguem boas exibições.
A presença em dois Europeus
Humberto Gomes esteve presente tanto no Europeu de 2004, como no de 2020. O atleta recordou o primeiro como um momento em que sabia que não ia ter muitas oportunidades, mas que lhe deu muita experiência. Referiu ainda que, na altura, fez um pouco o “papel de Gustavo Capdeville neste último Europeu”, pois quase não jogou.
Já este ano, viu a ida ao Europeu como “um prémio de carreira” que lhe deu alguma justiça, porque acha que merecia ter tido mais oportunidades na Seleção Nacional. Presente na convocatória de Paulo Pereira, o atleta agarrou a “oportunidade com as duas mãos” e estava pronto para jogar sempre que o treinador quisesse.
O desportista português ainda disse que “felizmente para Portugal, o Quintana esteve muito bem (infelizmente para mim), mas fizemos um Europeu histórico e estamos todos de parabéns.” Contudo, o seu espírito autocrítico pensa que podiam ter feito mais e o foco está já no Campeonato do Mundo.
A estreia nos pré-olímpicos
Para Humberto Gomes, o ponto alto da carreira seria ir aos Jogos Olímpicos, mas, para já, o apuramento para os pré-olímpicos ocupa esse lugar. “Ambiciono conseguir aguentar-me ao mais alto nível pelo menos durante mais um ano e depois aí sim poder entrar em decadência. Gostava muito de ir ao pré-olímpico, conseguir o apuramento e depois, se o treinador achasse que eu tinha condições de ir aos Jogos Olímpicos, a partir daí fechava a minha carreira internacional e dedicava-me só ao clube e ao trabalho”, referiu o atleta.
Questionado várias vezes sobre até quando pretende continuar a jogar, o guarda-redes disse que, se conseguir conciliar o trabalho com o desporto, pelo menos até 2022 planeia jogar. Apesar das incertezas quanto ao seu futuro, Humberto disse que, enquanto se sentir bem e achar que consegue dar o seu contributo à equipa, quer continuar a jogar. “Sou apaixonado pelo andebol”, salientou.
A primeira coisa que passou pela cabeça do guarda-redes e dos seus colegas de seleção quando conseguiram o apuramento para os pré-olímpicos foi “não pode ser”. No andebol, esta conquista era tida como impossível, e agora que estão tão perto, os portugueses nem acreditavam no que tinham alcançado. “O espírito de todos é darmos o que temos e o que não temos para conseguirmos esse sonho”, apontou.
O segredo da longevidade
“Eu sou de uma geração que gostava muito de brincar. O nosso tempo livre era jogar à bola, estar na rua, saltar às árvores e por aí fora. E se calhar isso deu-me uma preparação que os miúdos de hoje em dia não têm”. É desta forma que o agora guarda-redes do Póvoa AC considera ter conseguido as condições para se manter ao alto nível durante tanto tempo.
Humberto Gomes nunca teve graves lesões na sua carreira e referiu que, como sempre fez desporto e manteve uma boa forma física, tudo isso contribuiu para o sucesso no andebol. Além disso, o amor pela modalidade também o motivou e fez querer manter sempre a mente e o corpo são.
Gestão de um calendário rigoroso
Com tempo para a família, o trabalho e o andebol, o único tempo disponível para si próprio é das 23h para a frente. Com o início dos treinos, Humberto prevê uma mudança no horário para poder aproveitar o máximo de tempo com as filhas e a família. “Tenho de estar com as minhas filhas, às vezes tenho outras tarefas domésticas para fazer porque a minha mulher também trabalha. Depois do confinamento em que estivemos juntos 24 sobre 24, não será fácil para as minhas filhas ficarem mais tempo longe dos pais, mas para mim também não”, brincou o atleta.
Despedida do ABC e do Minho
Apesar de não saber se será uma despedida ou um até já, o atleta nunca pensou em despedir-se da sua segunda casa, mas sim terminar a carreira no clube que o fez crescer e o fez homem.
“Infelizmente a vida obrigou-me a tomar esta decisão difícil, mas consciente. Claro que não foi a despedida que idealizei devido à covid-19, não tive direito a despedida, mas enfim… é a vida. Foram 20 anos com o ABC ao peito e guardo cada um deles com muito carinho”, terminou.
Com uma vida dedicada ao desporto que ama e uma carreira quase toda construída sobre o piso do Pavilhão Flávio Sá Leite, Humberto Gomes abandona agora a casa que o viu crescer. Na hora da despedida, olha para trás e deixa uma marca que a história se encarregará de eternizar. Em 20 anos com o amarelo e preto do ABC/UMinho, o guarda-redes conquistou uma Taça Challenge, três campeonatos nacionais, três Supertaças e três Taças de Portugal. A aventura, que já vai longa, continua agora na Póvoa de Varzim.
Reportagem: Sofia Carneiro e Mariana Areal
Multimédia: Diana Carvalho