Percorreu o underground e para quem não a conhecia apresentou o seu cartão de visita com Martataca. “Apresento-me: M7 / Sou MC que promete, mudar a história do Rap”. Por infortúnios do destino, deixou a sua profecia de parte mas ainda hoje se transforma, quer seja no Youtube, quer seja na televisão portuguesa. Imortalizada como Beatriz Gosta, para muitos a sombra da Capicua, oficialmente Marta Bateiro, para mim, para sempre, M7, a padeira de Aljubarrota do Norte.
Ligeiramente distante do que me costuma trazer aqui, hoje apresento-vos a mixtape da M7, Martataca, “curta e grossa, tipo estaca”. Como não poderia deixar de ser, tudo começa com uma breve apresentação, onde M7 mostra a sua raça. Em apenas 10 segundos, dá-se a primeira fase de seleção. De repente, somos surpreendidos com algo, um som distorcido, poderíamos assim dizer, pouco agradável ao ouvido humano. Contudo, passada a tortura, que se inicie a viagem.
Por entre um beat genérico, mas não por isso menos interesse, a rapper começa logo em grande, garantindo que esta mixtape é “mais fat que muitos LPs”. Peço desculpa por começar já com as interrupções, mas reparem na (in)subtiliza da artista. Para quem não sabe, LP é a abreviação de long play. Geralmente, um LP conta com uma média de 12 temas, perfazendo, aproximadamente, 30 minutos. Apesar da relação tempo e qualidade puder ser relativa, Martataca conta com 9 temas, um total de 28 minutos e 42 segundos.
Como meia palavra para bom entendedor basta, avançarei. Assumidamente tripeira, M7 nega favores, “cá ninguém me apadrinha, conquistei tudo sozinha”; e sente-se preparada para qualquer combate (“E beefs nada…só postas de pescada / Mato só pelo prazer de uma boa gargalhada”). Por entre a ironia e jogos de palavras característicos, afirma que não há cá meias palavras. Na verdade, as palavras são a sua arma: “No Rap só tenho orgasmo quando fodo à coelho / Estilista que projeta, rima direta e concreta”.
Apesar de puder parecer, até porque a música é intitulada com o nome artístico de Marta Bateiro, “M7” não procura exaltar a artista. Ao invés (ainda que o pudesse fazer), M7 procura dar-nos a conhecer aquilo que definirá o seu trabalho daqui para a frente e de trás para diante.
Desta forma, apalpando o terreno (“Curto testar estruturas, não penses que é pessoal”) descobriu que o terreno é fértil (“Quando abusas nas escrituras, forneces bom material”). A partir daí, entrou em “modo competitivo” e a promessa foi feita, “pôr a escumalha daqui para fora”. Ouve-se em decrescendo, “M7… não confunda / M7… com MC chunga / Solidez aqui abunda / Bates-me e o teu barco afunda / Antes de falares do meu Rap, lava essa boca imunda!”
Os avisos ficaram todos feitos apenas em três minutos, agora ouvi dizer que quem tem telhados de vidro não atira pedras ao do vizinho. Por falar em telhados, chega-nos a segunda música de Martataca, “Telhado”. A introdução do single corresponde à intro da música “Say” do Method Man feat. Lauryn Hill. Desta forma, um clima de tranquilidade instala-se de imediato.
Parece que a temática das cartas veio para ficar. Desta vez, M7 escreve e declama-nos uma carta de amor. Tudo começa com “há tantas coisas que eu te queria dizer”, por mais simples que a frase possa parecer, a estratégia de captação de atenção não falha. A concentração prevalece e as dúvidas surgem, é esta a mesma M7 da música anterior?
Como qualquer um de nós, os artistas são seres multiformes. Uma mulher guerreira, sem papas na língua, é também uma mulher despojada. Com papas na língua? Não diria que sim, talvez com um pouco mais de rodeios, mas faz tudo parte do seu processo de conquista, diria eu.
M7 conta-nos que esta não é a primeira vez que se dá a conhecer, mesmo sabendo que a outra pessoa não está interessada (“Já não há nada a fazer… Já está tudo errado / Não se constrói uma casa a começar pelo telhado”). No entanto, não resiste à tentação, mesmo que isso traga consigo possíveis consequências, “depois procuro em vão paixão, onde só mora tesão”. Ou será que não?
Para quem só chegou a metade da música, aconselho que ouça até ao fim. Digamos que a mulher indefesa, capaz de se sujeitar à humilhação, é, afinal, uma “mulher independente, dona do meu nariz / Fiel, confidente, zero talento para atriz / Como amante dei tareia, dei-me inteira / Como amiga e companheira varro mais a feira”. Agora, a rapper deixa o suspense, “fica só para ver...”.
Segue-se “Rainha”, talvez uma das músicas mais conhecida da artista. Dando seguimento ao assunto anterior, M7 realiza uma ode ao género feminino. Se pudesse resumir a letra desta música numa só palavra, essa palavra seria sororidade. A artista acredita que a sociedade impõe demasiadas pressões às mulheres e, por isso, traz consigo um ombro amigo e não uma pedra. Mesmo que fisicamente não possa apoiar as mulheres, “Rainha” pode ser vista como um hino de libertação.
Como seria de esperar, a discussão chega à distinção do comportamento de uma mulher e de um homem que tenha relacionamentos com muitas pessoas. Uma discussão que, infelizmente, ainda é relevante nos dias de hoje. De qualquer das formas, a pergunta retórica de M7, como prometido, é reta e curta: “Mulher que fode quando quer sem medo, que lhe apontem o dedo / É puta…eu sou rainha do putedo, ok? / Diz-me lá porque é que tu podes e eu não / Porque é que somos carne mastigada e tu garanhão”.
De qualquer das formas, por entre rimas deliciosas (algumas das quais tive a oportunidade de referenciar), o refrão prevalece o meu preferido: “Não necessitas de um rei para seres rainha / De outrem não vivas em função / Não permitas que te fodam a autoestima / Se o teu gajo não atina, mete-lhe uns patins em linha, então...” Para além da lírica, esta é a música de todo o mixtape com o melhor instrumental, há que agradecer a Damian Marley.
Além de todas as possibilidades referenciadas acima, M7 à noite ainda é Isabel. Com o segundo melhor instrumental de toda a Martataca, “À Noite Sou Isabel” conta-nos um serão bem passado. Uma novela brasileira, um telefonema desafiador, uma noite sem fim. Além de uma bela história, poderíamos dizer que esta música é altamente educativa. Quem quiser descobrir um novo piropo, sinta-se à vontade.
Rewind. Após três músicas, regressamos à M7 que nos foi dada a conhecer. Com um instrumental muito mais forte ou, até mesmo, mais violento, a artista reforça que não está para brincadeiras, “Esta merda é a minha vida, não faço Rap nas calmas”. Pause. Se não disse até agora, acho que já vou tarde, mas mulher do norte que se preze não tem medo de tropeçar em alguns palavrões. Play.
Infelizmente, “K7” torna-se mais do mesmo. No entanto, traz consigo algo de novidade, permite relembrar aparelhos que hoje serão vistos como autênticos alienistas e artistas dos quais já ninguém se lembra de ouvir falar. Começamos assim com as cassetes, segue-se os BomberJack, o DJ Cruzfader e o Wu-Tang Clan, entre muitas outras referências.
Chega-nos a sexta música de Martataca, que creio inspirar-se na típica expressão portuguesa “de degrau em degrau”. No entanto, poderia estar associada a tantas outras, como “quem espera sempre alcança” ou, até mesmo, “grão a grão, enche a galinha o papo”. Quem poderia prolongar esta conversa era eu, mas creio que a mensagem foi já transmitida. Desta forma, “Degraus” explora o percurso de M7 no mundo do Rap.
Ao longo de dois minutos e meio e um instrumental melancólico, a artista transmite a sua relação com o Rap, “Nem eu sei onde é que acaba a Marta e começa a M7 / Mete na cabeça, wack, eu sou casada com o Rap”, a sua dedicação com o meio, “Não nego, ao Rap entrego quase todo o meu tempo / A aperfeiçoar a escrita, pois ela é o meu ponto fraco”, as suas dúvidas, “Já pensei em desistir”, e a chama que reanima o seu percurso, “mas a seguir vem a força que me faz evoluir…”.
Dois dos aspetos mais interessantes que M7 explora nesta música são a noção de responsabilidade e a noção de prestação de contas. Dois aspetos que, a meu ver, deveriam andar sempre de mãos dadas. A rapper explica que até poderia rimar o que as pessoas gostam de ouvir mas o seu objetivo é, muito além de agradar, causar uma reação. “Fica fora, mata esfola, a cara cora, a boca seca” e, até pode pecar “por ser direta e emotiva em demasia”, mas é isso que a motiva.
Apesar de puder passar despercebido, M7 realiza mais uma das suas críticas. Desta vez, a artista refere que para se singrar no mundo do espetáculo é preciso “criar buzz na net, senão fica a ganhar pó”. No entanto, não fica por meias palavras e relembra que a exposição tem limites. “Para não ser falso mito”, acrescenta ainda que evita saltar degraus.
A sétima música da Martataca é como aquele último pedaço de chocolate, aquele que deixa a desejar por mais. Nesta mixtape, é com “Tabu” em que M7 faz uma colaboração com Capicua. Com esta música regressamos a mais um tema recorrente do álbum. Homens e pick-up lines?
Tendo em conta os trabalhos mais recentes de Capicua, poderíamos ficar desiludidos e achar que esta música é completamente supérflua. No entanto, se prestarmos bem atenção, por entre algum interesse e tentativa de sedução, a ironia fica latente na colocação de voz das artistas e, até mesmo, no instrumental elegido.
Da outra vez, resisti e não enumerei alguns dos melhores piropos, mas desta vez não resisto. Espero que se riam com eles tanto como eu: “Não sou atriz digo, estás por um triz filho, chamo-te um figo e faço figas para tu vires comigo”, “Eu faço birra, eu faço greve mas acima de ti não existe e abaixo não me serve”, “Quando provei desse cacau caguei para a Nestlé” e “Tu arrumas para a esquerda, mas eu sou mulher / Para te fazer beijar um bigode à Hitler”. Visto que não posso elencar todos os exemplos, aconselho vivamente a sua consulta individual.
Apesar das dicas agressivas, a sensualidade intrínseca a “Mixa” fica mais que latente. Para além disso, parece que voltamos às cartas. Quer dizer, acho que se trata mais de um manual de instruções, “Ainda há pessoal que não sabe onde é que estacionou a nave / Cabe aqui à moça pôr-te a par do que se passa / Para que tu para a próxima não ponhas esse pé na poça”.
Perguntam-se de que tipo de manual de instruções se trata, não é? Apenas pela introdução, creio que já perceberam que não é dos convencionais. Resumidamente, M7 é uma mulher que sabe muito bem o que quer e o que não quer e, por isso, não tem cabeça para fingir que as coisas lhe agradam quando na verdade não o fazem.
E chegamos ao fim desta viagem com a música que intitula esta mixtape, “Martataca”. Passando a redundância, resumidamente a música é o resumo de todo o álbum. Vejam lá se não concordam, “zero teor de pudor na palestra, sou indigesta”. Para além disso, M7 aproveita para agradecer a todas as pessoas que a ajudaram na construção e lançamento da mixtape. Termina, alertando os MCs da HÁ13, “abriguem-se todos, porque vem bomba por aí!”
Não acho que este mixtape seja para qualquer pessoa, poderia até dizer que não é para a generalidade das pessoas. A honestidade crua e pura de M7 não passa indiferente e, como dizem, as verdades custam a engolir. No entanto, algumas das músicas mais mainstreams iriam, com toda a certeza, colocar salas inteiras a decorar dicas. M7, nós é que temos de te agradecer!