Comemora-se hoje o 41.º aniversário do SNS.

 Em 1979, nascia o Sistema Nacional de Saúde (SNS), uma estrutura erguida para assegurar o direito à promoção, prevenção e vigilância da saúde. Hoje, 41 anos depois, o SNS enfrenta as fragilidades impostas pela primeira vaga da pandemia de Covid-19 e tenta recuperar as consequências de um mecanismo de compensação no atendimento aos doentes, na iminência de uma nova vaga.

O ComUM esteve à conversa com Carlos Capela, docente na Escola de Medicina da Universidade do Minho. Em causa estiveram, entre outros, as repercussões do vírus e as expectativas para o futuro da vacina e o do ensino prático.

ComUM – Começando pelos básicos, qual é o impacto do SNS na vida das pessoas? Qual a sua importância?

Carlos Capela – O Sistema Nacional de Saúde foi criado como uma forma de garantir os cuidados necessários a todos os cidadãos do país. Nomeadamente, para momentos importantes nas nossas vidas onde é necessária assistência seja do ponto de vista da prevenção ou do tratamento. Falo no âmbito das crianças, relativamente à vacinação e, na idade adulta, estão em causa as doenças crónicas. É também necessário para a mulher que engravida, no suporte a toda a gravidez e no pós-parto. Os idosos, que são doentes com imensa patologia, também necessitam de acompanhamento mais próximo e, eventualmente, de recorrer a este serviço por motivo de agravamento ou de doenças que precisam de observação frequente.

Seja a nível dos cuidados primários dos centros de saúde ou a nível hospitalar, o SNS é uma forma transversal ao longo da vida. Todos nós, desde o nosso nascimento até aos últimos dias, a qualquer momento podemos ter necessidade de um Sistema Nacional de Saúde forte e estruturado que nos responda com os cuidados necessários. Tem um relevo central na nossa vida. Nós somos feitos de vários componentes, mas a saúde é um pilar da nossa segurança.

ComUM – Como descreve a fase que o SNS atravessou com o confinamento e continua a atravessar com a pandemia?

Carlos Capela – Durante o confinamento, tivemos a percepção, como profissionais de saúde, que o nosso SNS trabalha muito no limite das necessidades de resposta. Numa situação nova em que todos antecipávamos que as necessidades iam aumentar exponencialmente, tanto o povo como a estrutura temeram que o SNS não fosse aguentar o aumento abrupto de solicitação.

Na verdade, na primeira vaga, houve um mecanismo de descompensação, ou seja, o foco passou para os problemas e os doentes associados à covid-19 e, até certa medida, houve uma paragem na resposta aos restantes cuidados, como as consultas e as observações de rotina. Isto leva a uma maior preocupação perante a segunda vaga.

Vamos ter que voltar a dar resposta a um incremento substancial de doentes por infeção de coronavírus, seja no internamento ou no ambulatório, e o sistema não vai suportar uma paragem tão significativa no seguimento de outros pacientes e igualmente importantes.

O SNS não vai poder voltar a parar o acompanhamento dos outros doentes sob o facto de haver um custo tremendo nas suas vidas.

A paragem daqueles três meses, colocou verdadeiramente em stress este tipo de atendimento. Isso deixa-nos a todos algo apreensivos quanto à segunda vaga, mas acreditamos que vamos conseguir arranjar forma de atender e chegar a todos os que necessitam do SNS. Confiamos nos nossos governantes e em quem gere toda a estrutura para que acautelem todo este tipo de cuidados.

ComUM – Sobre a vacina, qual é a melhor forma de gerir as expectativas?

 Pois, de facto tem muito que ver com gerir as expectativas. Nós, médicos, convivemos com informação técnico-científica e a comunidade vai lendo as publicações que saem do âmbito da vacina. Há que estar atento ao tempo da ciência. Neste momento, ainda só estão a ser publicados os resultados das fases um e dois. São estudos muito preliminares sobre a capacidade da vacina criar uma resposta imunocompetente ou com um perfil de segurança, feitos através de ensaios em ratinhos e humanos. Estão, portanto, ainda muito longe dos ensaios clínicos que albergam 30, 40 ou 50 mil pessoas e que depois fundamentarão as decisões dos reguladores de saúde para aprovar a vacina. Estamos a acompanhar esse processo e o tempo de resposta que vemos nesses artigos é mais ou menos o expectável.

Temos a perceção de que ainda faltam largos meses para que de facto venham resultados; em condições normais, diria anos. Não escondemos que, neste caso, há uma enorme pressão política e económica, e até a nível de saúde pública, para acelerar alguns processos associados ao recrutamento de doentes e a avaliação de resultados mas a ciência e os valores nela praticados não vão permitir ultrapassar passos inultrapassáveis, nomeadamente, a questão da segurança. Seja neste ano ou no próximo, ficará sempre para a história como o tempo-recorde da geração de uma vacina em grande massa para uma doença.

Deste modo, temos de ter cuidado em relação aos resultados e as expectativas devem ser, infelizmente, bastante moderadas. Porque, de facto, nós vamos precisar da vacina mas vamos precisar dela em segurança e com eficácia comprovada e não correndo riscos que podiam ser bem piores do que a realidade que já temos.

E quando vemos todos os dias as notícias sobre um país que compra o lote daquela vacina e que aqueloutra já está a ser produzida, obviamente trata-se de informação politizada. Este tipo de comunicação, no meio de uma pandemia, pode estar a fomentar uma expectativa demasiadamente boa, dizendo que teremos a vacina a curto-prazo quando a própria ciência não o permite.

No fundo, a expectativa é a mesma do início: convém pensar que só no próximo ano é que haveria condições para começarmos a ter uma vacina com administração aprovada pelos reguladores da saúde. No âmbito dos fármacos, há, por exemplo, a utilização de urgência de determinada solução ou medicamento para situações de extraordinária complexidade. Em certas circunstâncias, isso permite dar alguns saltos, mas no caso das vacinas é pouco provável que isso aconteça. Portanto, a expectativa mais real e científica apontaria sempre para 2021.

ComUM – A nível de ensino universitário, considera que o regime adotado foi o mais adequado? Imagina alguma outra abordagem?

Carlos Capela – Em termos de ensino universitário, foram adotados vários modelos de ensino académico. Vamos distinguir dois períodos, um a partir de março, quando se estabeleceu o estado de emergência e não havia alternativa que não fosse continuar o ensino à distância por meio virtual. Aí, nem sequer é possível dizer se foi melhor, pior, bem feito ou mal-feito porque restava basicamente aquela possibilidade até ao final desse ano letivo. Se calhar a maior fragilidade conseguir encontrar os mecanismos de software e de interação com capacidade de chegar a uma melhor interação entre o docente e o aluno. O ensino online ficou mais dependente da melhor utilização de recursos do que propriamente da não-adopção de qualquer outro método de ensino.

ComUM – No caso da Universidade do Minho, há muitos cursos com vertentes práticas. Quais as repercussões na formação dos estudantes? Já há estratégia para o futuro?

Carlos Capela – Já começámos a desenhar a programação deste ano letivo, segundo com orientações do ministério e, sobretudo no contexto do ensino médico. É necessário pensar que uma componente prática nunca poderia nem poderá deixar de existir. Portanto, nós adotámos aquilo a que podemos chamar um sistema híbrido. As componentes fortemente teóricas serão por si online e com um mecanismo de interação a tempo real, dando sempre preferência ao contacto professor-aluno.

E, relativamente às atividades com aspetos práticos de treino e de interação com doentes, no âmbito da medicina ou do laboratório de técnicas, estamos apostados e a desenhar aulas dentro das regras da Direção-Geral da Saúde (DGS) e do bom senso. Estamos a programar as aulas reais, presenciais, naturalmente sempre preocupados com todas as regras de segurança e atentos ao que a evolução da pandemia nos vai determinar.

Hoje e esta última semana, vivemos exatamente hoje e esta última semana um momento de uma pioria significativa na infecção comunitária. Está a deixar-nos a todos apreensivos mas, neste momento, ainda vamos pensar o que se vai fazer no âmbito do ensino prático.

Até porque, de facto, isto pode ter um impacto tremendo da formação dos nossos alunos, mais uma vez falo no impacto dos alunos de medicina. A necessidade do ensino prático é absolutamente central. Portanto, tem e deve existir dentro das regras. É essa a aposta que nós estamos a fazer na escola de medicina.

ComUM – Num contexto de normalidade, a possibilidade de aulas online poderia ser benéfica para alunos que estejam, por exemplo, numa situação de saúde mental fragilizada ou qualquer outra que os comprometa a nível presencial?

Eu diria naturalmente que ainda vamos viver dentro desta névoa da pandemia e da limitação da liberdade durante muito tempo. Há aspetos positivos ou favoráveis que podemos estar a aprender estes meses, mas, se calhar, ainda não os conseguimos retirar.

Naturalmente que a componente virtual ou online, a utilização e a sobre-utilização em massa nos fez dar um salto quântico naquilo que já fazíamos muito raramente de facto com as componentes do e-learning.

No ensino presencial há aspectos da relação docente-aluno ou da comunicação que são essencialmente insubstituíveis. Mas falo sobretudo no âmbito da medicina e nas questões da comunicação e da postura que nós temos naturalmente que dar e que passar aos nossos alunos, futuros médicos. Agora, o uso destes mecanismos revela poder tornar-se um complemento fantástico no futuro, para resolver e colmatar algumas situações que nós vivíamos.

Por exemplo, aprofundar alguns aspectos do ensino que o tempo presencial não permite. Podemos ter algum tempo adicional de aprofundamento: não é ter mais aulas nem mais horas, é ter uma outra qualidade de aulas. É com a normalização do ensino à distância no futuro somando e subtraindo com o ensino presencial que se vai determinar o equilíbrio.

Só podemos tirar coisas positivas desta arma adicional. Nomeadamente, permitir um conjunto de mecanismos de, por exemplo, resolução de problemas à distância ou de outro patamar de interação que irá enriquecer o ensino normal presencial e à distância. Alunos com necessidades especiais poderiam ter um complemento do ensino ou as aulas incluiriam uma adaptação específica a determinadas limitações. É tudo isso que os sistemas de informação nos podem ajudar a ultrapassar para democratizar ainda mais o ensino.

ComUM – Como se adaptou e desenvolveu o funcionamento do Hospital de Braga, sendo uma instituição pública?

Carlos Capela – A teleconsulta acabou por ser e continua a ser o mecanismo de ligação entre o hospital e o doente. Se numa situação inicial do primeiro ou segundo mês, considerarmos a maioria dos doentes com patologia crónica, de facto esta ferramenta permitiu manter a ligação entre o cuidador e o doente. Isto sobretudo na manutenção de estratégias terapêuticas, na renovação de medicação e na reprogramação de exames.

Naturalmente que quando se passa dessa primeira observação, todas as consultas acabam por colocar em risco a relação de cuidado entre o médico e o doente. Torna-se uma relação praticamente insustentável e esse é o nosso grande receio para este último quadrimestre do ano: podermos ter que voltar e continuar a fazer teleconsulta.