Os Conselhos da Noite, o primeiro filme de José Oliveira, teve antestreia exclusiva esta segunda-feira, no Theatro Circo. A obra cinematográfica portuguesa explora os limites entre o interior da personagem principal (Roberto) e o exterior que o rodeia (Braga).

O filme retrata a jornada de um jornalista desanimado que sai duma quinta no Alentejo para retornar a Braga, depois de estar ausente das suas origens durante 20 anos. Misturando um mergulho às profundezas do ser com um lado mais documental, enquanto retrato de uma cidade em agitada mudança, a obra afirma-se como um ponto de referência do cinema português.

A longa-metragem parece ter momentos mais constrangedores a nível de representação, que são estranhamente mais frequentes nas personagens ditas “principais” do que nos “não-atores” que no filme participam. Apesar disto, Os Conselhos da Noite parece absorver vários pequenos e interessantes pedacinhos de cultura cinematográfica (e não só) para juntar tudo num introspetivo e delicioso passeio pelo interior da mente de Roberto, a personagem principal, e pelo amplo espaço bracarense que é também a sua origem. Como é costume neste tipo de viagem, convém focar menos no enredo em si e mais no esqueleto desta obra para melhor entender a naturalidade que a torna única.

 

Combinando referências noturnas da cidade como a agitação passional do Mal-Amado, o conforto noctívago do Mini-Sport ou o saudosismo revolucionário do Subura Bar, somos marcados, logo desde o início, pela nostalgia duma juventude rebelde, eventualmente inspirada nas vivências do próprio cineasta. Outro marcante e turbulento momento é o inicial, onde Roberto decide gastar algum do seu dinheiro para uma estadia no “berço de ouro” onde nasceu, um antigo hospital que dá agora lugar ao prestigiado Vila Galé, hotel bracarense de renome, antes de voltar para casa dos pais.

Este regresso assume-se enquanto temática principal da longa-metragem, já que quase toda a jornada é feita revisitando locais, paixões e lembranças do passado, agora transfiguradas por duas décadas de esquecimento. É também através desta sobrecarga emocional que o protagonista consegue escrever um romance que julgava estar para sempre perdido, enquanto reacende paralelamente um romance, também ele antigo, no sentido menos literário da palavra.

O filme é uma carta de amor à autenticidade bracarense, que consegue arrancar a alma da cidade para a mostrar imperfeita, mas luminosa, ao grande ecrã. Os Conselhos da Noite deve muita da sua vivacidade à intensa participação de inúmeras figuras bracarenses, sejam elas célebres ou simplesmente parte integrante do seu quotidiano.

Para situá-las, temos o auxílio de uma abundância de cenários marcantes da cidade, e temos também a fluidez de um enredo que, apesar de não trazer nada de particularmente novo ao cinema, serve de veículo para transmitir sensações muito naturais, mas ao mesmo tempo extraordinárias. Para dar cor a estas sensações, contamos ainda com uma variadíssima banda sonora que conta com temas dos Mão Morta, Palas, Ângela Polícia, Máquina del Amor, Dead Men e Zeca Afonso. Alguns dos músicos, como Adolfo Luxúria Canibal, Filipe Palas e Fernando Fernandes, entre outros, são também atores na longa-metragem.

E, como se tudo isto não bastasse, paira ainda, sob a inflamada jornada do nosso desiludido e adoentado jornalista, um mythos bracarense que une mistérios da aura religiosa e passado românico da cidade aos mistérios subterrâneos dos locais de culto musical. No final de contas, a longa-metragem é uma sopa da pedra feita integralmente de ingredientes de Braga que promete deliciar qualquer espectador, familiarizado ou não com o ambiente que José Oliveira explora.