Tudo Acaba Agora estreou a quatro de setembro na Netflix. Desde o lançamento da trama, foram já feitas diversas tentativas de interpretação do seu verdadeiro significado. Frustrante para alguns, filosófico para outros, Charlie Kaufman reforça o seu estatuto enquanto um dos mais celebrados guionistas da atualidade.

O escritor-diretor, comummente reconhecido pelo seu trabalho em Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004) e Synecdoche, New York (2008), explora de novo temas relacionados com identidade, o significado da vida e mortalidade, desta vez através da adaptação do livro de Iain Reid. Num filme que quase transcende as normas dos géneros em que se insere, Kaufman não se absteve de levar ao limite o significado de subjetividade no que acabou por, na sua peculiaridade, ser uma trama com temas universais, comprovando mais uma vez o seu génio.

A premissa do filme é enganadora: uma jovem mulher (Jessie Buckley) embarca numa viagem de carro para conhecer os pais do namorado (Jesse Plemons). O que poderia ser o início do enredo de uma comédia romântica torna-se num thriller/horror no trailer. Deste modo acaba por não seguir o primeiro género ou o que seria de esperar do segundo. Kaufman criou, a partir de um enredo de infinitas interpretações e detalhes que facilmente passam despercebidos à primeira vista, um ensaio sobre identidade, memória, solidão e arrependimento.

O filme apresenta-se quase como um sonho. A normalidade do durante acaba quando acordamos e nos apercebemos da estranheza do que vimos, uma mistura de memórias recentes e antigas, tudo bordado numa tapeçaria sem forma. No filme, a sensação acaba por ser a mesma.

Kaufman aborda a forma como as memórias nem sempre são a representação da realidade e a tendência para projetar nas pessoas aquilo que desejamos que fosse verdade. Devagarinho, a realidade deixa de se basear em factos e é substituída por aquilo que queremos que esta seja. O diretor brinca com esta ideia através da fluidez quase impercetível com que altera cores de roupas (vestidos às riscas passam a ter flores, brincos de argola passam a pérolas, …), maquilhagem e decoração.

Kaufman traduziu também o sentimento de perda em relação a um passado que não pode ser mudado e como se criam cenários alternativos do que poderia ser sido se. Se fossemos diferentes, se tivéssemos tentado com mais afinco, se tivéssemos falado em vez de ficar calados. Talvez a solidão pudesse ser evitada se fosse possível apontar exatamente o ponto no tempo em que algo correu mal, e assim o resto das nossas vidas seria apagado e substituído por memórias mais gentis. À medida que o enredo avança, esta confusão em relação ao que realmente aconteceu e ao que é inventado apenas cresce e a uma velocidade imperdoável, ordenando tempo de contemplação no final do filme e, possivelmente, a uma segunda visualização.

Tudo Acaba Agora dramatiza ainda a ideia de identidade. “Nada é mais raro em qualquer homem do que um ato próprio” é uma das citações tornadas quase palpáveis pelo enredo. A jovem mulher cita o poema Bonedog de Eva H.D. como se fosse de autoria própria, mas mais tarde vê o mesmo poema publicado num livro antigo. Na viagem de volta no carro, recita a crítica de Pauline Kael ao filme A Woman Under the Influence (1974) com a naturalidade de quem realmente decidiu expressar a sua opinião, algo saído do momento e não uma cópia de um trabalho pré-existente.

Existem outras pistas como estas ao longo de toda a trama, representado como grande parte daquilo que somos são na verdade pedaços da identidade de outras pessoas. Lemos e ouvimos e vemos aquilo que não nos pertence tão frequentemente ao ponto de eventualmente e inconscientemente os adotarmos como algo nosso.

Sem querer explicar o final, a mensagem é, na sua estranheza, universal. Não é necessário ter uma certa idade para conseguir compreender as motivações por detrás das ações e decisões daquela personagem e o cerne da sua angústia e arrependimento.

Jesse Plemons, que desempenhou o papel de Lyudmilla Ignatenko em Chernobyl, reafirmou a capacidade de tornar as personagens que interpreta em algo seu com a confiança das atrizes veteranas de Hollywood. Nos créditos finais aparece como young woman e ao longo do filme muda constantemente de nome. Uma personagem sem aparentemente uma personalidade fixa, com roupas, nomes, sotaques e profissões a mudar de cena para cena poderia ser um entrave à existência de uma ligação entre espectador e personagem.

E ainda assim, Jessie foi capaz de tornar esta mulher aparentemente sem forma em alguém cuja história merece ser acompanhada. Foi capaz de transformá-la em alguém que se mantém familiar ainda que mude, pela forma exímia como é capaz de recitar frases atrás de frases de diálogo de forma honesta.

Jesse Plemons, por sua vez, espremeu ao máximo a genialidade da sua personagem. A quase timidez com que fala não o impediu de imbuir na ação o que seria normalmente atingido pela música ou cinematografia. A raiva acumulada em algumas das cenas cria uma ansiedade expectante pelo momento em que irá finalmente explodir.

Em suma, Tudo Acaba Agora acaba por ser uma reflexão sobre o comportamento humano e a vida, sobre o tempo e a cruel inevitabilidade deste, o que deixamos no passado e o que criamos para facilitar a ideia de um futuro. Mascarado como um thriller, Charlie Kaufman adaptou o livro de Iain Reid com o estilo que lhe é tão particular, esmerando-se nos diálogos e monólogos da enigmática young woman.