Os Filhos do Homem foi lançado em 2006 e, 14 anos depois, continua a ser referido como um dos melhores filmes criados desde 2000. A adaptação do livro de P. D. James prova como a humanidade facilmente se desmorona sob o arrependimento dos próprios falhanços mas como, ainda assim, não quebra por completo.
No ano 2027 a infertilidade é um problema mundial e a falta de explicações concretas levou a que a sociedade, pouco a pouco, tenha sucumbido ao desespero. O Reino Unido é um dos últimos países a ter um governo, mas está longe de ser um porto seguro. Inundado por pedidos de asilo, na sua maioria rejeitados, o país torna-se num beco de ódio, de pilhagens e de atos terroristas.
Nos primeiros segundos do filme é revelado que a pessoa mais nova do mundo, com 18 anos, morreu esfaqueada. A morte do Baby Diego é lamentada pela população num choro e luto comum. Segundos depois de a notícia ser transmitida em direto nas televisões de um café, o edifício é alvo de um ataque terrorista e explode. Toda esta exposição é apresentada antes do filme atingir a marca dos dois minutos.
A história inicia-se in medias res, quando a sociedade se rendeu já à sua própria miséria, após desistir de um mundo que já não compreende. As ruas estão completamente pútridas, e através do ecrã é quase possível sentir o trago a fumo e o cheiro de tubos de escape e ruas por limpar, as pessoas movem-se como montes moles de carne, mais por obrigação e hábito do que por energia e convicção. Por breves segundos julguei estar a ver um filme de época, com a sua típica cinematografia azulada, ruas quase opacas pelo fumo das chaminés e roupas descoloradas. Ainda que se passe em 2027, é como se a sociedade tivesse regredido e rastejado de volta a algum tempo anterior, já passado e esquecido, depois de perder a noção de como viver pelas regras de um mundo moderno.
O interesse do filme não depende do desconhecido ou do distópico: não é explicado quando ou como é que as mulheres ficaram inférteis, o que aconteceu quando a humanidade percebeu que a sua simples existência corria perigo, ou que tipo de teorias, possíveis explicações e curas estavam a ser engendradas. Os Filhos do Homem não espera que o espectador se adapte a uma nova realidade: simplesmente o coloca lá, no seu âmago. A jornada das personagens é seguida de perto, em particular a de Theo (Clive Owen), e é assim que o filme se torna familiar. Através das pessoas e dos laços que criam. Através da esperança.
O mundo é implacável e Theo adaptou-se à crueldade e frieza de uma realidade que simplesmente não quer saber dele. Não se deixa envolver pelo luxo que é amar, pois o passado ensinou-lhe que preocupar-se com alguém é um bilhete de graça para o desgosto.
No entanto, depois de um rápido fluxo de eventos, Theo é confrontado com a decisão de contrabandear uma rapariga imigrante (e grávida) para um lugar seguro. E assim, todas as camadas de autopreservação criadas ao longo dos anos são rasgadas uma a uma pela sensação inegável e quase sufocante da esperança, que faz alguém correr por entre prédios desmoronados, a utilizar o próprio corpo como um escudo, a arriscar a própria vida para que a vida em si tenha uma segunda oportunidade de existir.
Se despirmos o enredo da sua carga de ficção científica, ficamos essencialmente com a história de um homem e de uma jovem grávida que viajam pelo país até um porto seguro. A genialidade do enredo revela-se na densidade de cada personagem e do mundo magistralmente trabalhado e pensado ao detalhe. Cada personagem tem uma razão própria, independente e motivada para existir, recusando ser apenas um ponto conveniente no percurso do herói. Cada um foi moldado à sua maneira pelas circunstâncias em que vive e pelas decisões tomadas no caminho.
Como referido anteriormente, é um mundo implacável, e o enredo não se preocupa com esterilizações ao conteúdo ou às cenas mais visualmente intensas. As cenas one shot não dão tempo ou espaço para desviar o olhar ou para respirar. Não há cortes para aliviar a tensão, e quando um personagem morre, não há grandiosas e prolongadas cenas entre família ou amantes. O herói de alguém é um inconveniente nos objetivos de outrem, e é exatamente assim que eles são tratados: como algo dispensável.
E após toda esta dor, após toda esta ruína, o sentimento que sobreviveu no final foi de esperança. A rica história e a poderosa cinematografia foram acompanhados por performances dignas das mais condecoradas premiações, particularmente por parte de Clive Owen, Michael Caine e Clare-Hope Ashitey. Clare ficou responsável por interpretar Kee, a jovem grávida, que manteve a jovialidade e uma curiosidade pelo futuro muito características de alguém novo, de alguém que viu do que a humanidade é capaz e ainda assim escolhe viver.
Em suma, Os Filhos do Homem dificilmente será esquecido por quem o vê, e permanecerá permanentemente como um exemplo insigne de como contar uma história com compaixão e densidade. Todos os detalhes contribuem para a narrativa, desde o casaco da personagem principal às beatas de cigarros pisadas nos pavimentos. A trama prova ainda que uma boa história não necessita de uma premissa rebuscada, mas algo simples e honesto.
Título original: Children of Men
Realização: Alfonso Cuarón
Argumento: Alfonso Cuarón, Timothy J. Sexton, David Arata, Mark Fergus, Hawk Ostby
Elenco: Clive Owen, Clare-Hope Ashitey, Michael Caine
EUA/Reino Unido
2006