O Ano da Morte de Ricardo Reis estreou no dia 1 de outubro nos cinemas. A obra literária de 1984, que se aproveita do facto de Fernando Pessoa não ter atribuído uma data de falecimento a um dos seus heterónimos, teve finalmente a sua adaptação cinematográfica. A longa-metragem apresenta-se tecnicamente surpreendente, mas com performances que deixam a desejar.

Esta longa-metragem é uma adaptação cinematográfica da obra homónima de José Saramago. Creio que todos nós temos um pouco mais a dizer quando lemos o livro que origina um filme. Algumas partes tornam-se surpresas agradáveis, outras que projetámos de maneira diferente, nem tanto.

Num tom mais positivo, esta adaptação manteve a grande maioria do simbolismo que a obra original carrega e que a torna tão especial. Existiram, de facto, partes e momentos novos que não constam do livro e que funcionaram bastante bem. A junção de gramática portuguesa, com o sotaque brasileiro de Ricardo Reis fazem todo o sentido perante os seus 16 anos de autoexílio e confesso que não tinha pensado nesse pormenor inteligente.

A relação do autor com a sua criação, criação esta que ganha um pouco mais de vida independente, é, também, bastante interessante. João Botelho dá-nos a oportunidade de conhecer um Fernando Pessoa que não esperávamos. O célebre autor que, pelas suas obras, levamos como alguém ligeiramente mais sério, torna-se numa pessoa bastante carismática e com um grande sentido de humor que dá uma leveza necessária ao filme. Leveza obrigatória para uma longa-metragem que reflete constantemente sobre o estado da vida, do país e do mundo.

Por outro lado, sinto que algumas partes não foram tão bem transpostas ou transformadas. O simbolismo e o binómio entre as duas mulheres desvaneceram-se um pouco, tomando elas um papel que acaba por reforçar apenas o lado mulherengo de Ricardo Reis.

Fiquei, também, desiludida com o facto de Marcenda (Victória Guerra) se apresentar como uma mulher menos inteligente do que o que recordava. Assim como Lídia que, apesar de os seus conhecimentos serem de um teor mais social, torna-se aqui um pouco um mero objeto sexual. Sublinha-se ainda a presunção de que o espectador conhece de trás para a frente a obra de Fernando Pessoa, que pode não ser o caso. Realça-se, ainda, uma ou outra frase que foram transpostas e se tornam desnecessárias, havendo o apoio visual que não existe no livro.

No que concerne a performance dos atores, tenho algumas críticas a tecer. Primeiramente, e esta mais geral, creio que existe um grande problema que abrange a maioria do cinema português. Talvez por noutros países as artes performativas serem mais valorizadas, os atores estrangeiros, geralmente, podem dedicar-se apenas ao cinema, ou apenas ao teatro, ou apenas à televisão.

Em Portugal, por sua vez, isso não acontece, o que muitas vezes leva a que a performance perca qualidade. Já não é o primeiro, e acredito que não será o último, filme português em que reparo em diversas técnicas e “tiques” teatrais, o que leva a que a envolvência na estória seja menor, pois as performances parecem exageradas e um pouco artificiais. O teatro exige expressões carregadas e movimentos muito expansivos, muito devido à distância do público ao ator. No cinema, estas técnicas gravadas com bastante proximidade tornam-se muito pouco naturais.

Ainda abrangendo as performances, reparei numa grande discrepância de qualidade entre o elenco. Pela negativa, destaco Catarina Wallenstein (Lídia), de expressões pouco naturais e entoações divergentes do conteúdo falado, a atriz deixa a desejar. Por outro lado, Chico Díaz (Ricardo Reis) e Luís Lima Barreto (Fernando Pessoa) protagonizam duas personalidades muito distintas de uma forma impecável. Neste parâmetro resta-me ainda deixar um apelo a que voltemos os nossos olhos para Victória Guerra, pois este jovem talento, mas que conta já com um vasto e rico currículo, tem muito a oferecer e a ensinar no parâmetro do cinema português

Quanto á edição, á fotografia e restantes aspetos técnicos, praticamente só tenho a enaltecer. Uma banda sonora bem escolhida e pertinente que dita o drama. O uso do preto e branco quase até ao final foi uma jogada bastante inteligente, nomeadamente para a construção da época. Planos de pormenor muito dramáticos, transições engraçadas e momentos bastante bem conseguidos, como a leitura da carta de Marcenda.

Por fim, e de todo não menos importante, um enorme aplauso à direção de arte que, com um orçamento visivelmente reduzido, criou uma mística engraçada e uma recriação de espaços perfeita ao milímetro. Fiquei, inclusive, surpreendida pelo primeiro encontro do protagonista e de Marcenda no salão de jantar, que se mostrou exatamente aquilo que o livro nos faz imaginar.

Creio que João Botelho não poderia ter escolhido melhor ano para a adaptação desta obra. A pertinência de temas, como a emergência dos totalitarismos e do populismo, é incrível. A longa-metragem é visualmente muito estimulante, as performances nem por isso. Recomendo e sugiro que debatam o final tão excêntrico e curioso, mas que se agarrem à obra de Pessoa primeiro.