Adriana Calcanhotto completa este sábado, dia 3 de outubro, 55 anos. Apenas por dois dias, não nasceu na data que celebra aquilo que se tornou a sua vida, a música. De qualquer das formas, com 40 anos de carreira criou A Fábrica do Poema e tornou-se O Micróbio do Samba. Mais recentemente, tentou até combater a pandemia com um surto criativo, SÓ – Canções da quarentena.
Em 1965, nasceu em Porto Alegre aquela que hoje é uma artista multifacetada. Filha de Carlos Calcanhoto, baterista de jazz e bossa nova, e de Morgada Assumpção Cunha, bailarina e professora de Educação Física, tudo indicava um futuro promissor no mundo do espetáculo. Apenas com seis anos de idade, Adriana da Cunha Calcanhotto, mais conhecida por Adriana Calcanhotto ou Adriana Partimpim, recebeu o seu primeiro instrumento, uma guitarra clássica, e a aventura iniciou-se.
Apesar de ter começado a compor músicas na adolescência, o seu primeiro álbum foi apenas lançado em 1990. Desta forma, com 25 anos, Adriana Calcanhotto presenteou-nos com as interpretações de “Naquela Estação” de Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos, do “Caminhoneiro” de Erasmo Carlos, John Hartford e Roberto Carlos e da “Sonífera Ilha” dos Titãs, entre muitas outras. De qualquer das formas, podemos ter já acesso a duas músicas originais da artista, “Enguiço” e “Mortaes”.
Apesar de muitos acreditarem que as composições fogem da sua assinatura pessoal, acredito que estas podem revelar muito do trajeto e crescimento pessoal da compositora. Independentemente das múltiplas interpretações das músicas autorais, ou precisamente por isso, este álbum arrecadou um disco de ouro, vendendo mais de 50 mil cópias no país.
Mais tarde, preencheu ainda o serão de mais brasileiros, uma vez que “Naquela estação” integrou a trilha sonora da telenovela Rainha da Sucata (1990), de Sílvio de Abreu. A interpretação rendeu-lhe ainda o Prémio Sharp para revelação feminina.
O segundo trabalho da revelação chegou dois anos mais tarde. Com aproximadamente 38 minutos, Senhas afasta-se das regravações, de forma a dar lugar a composições da autoria de Adriana Calcanhotto. Este álbum rendeu à artista o seu segundo disco de ouro.
Comummente, os destaques do álbum vão para “Esquadros” e “Mentiras”, temas que fizeram parte do livro Pra que é que serve uma canção como essa?. Além disso, este último conquistou lugar na trilha sonora da novela Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa.
Os discos de ouro parecem andar sempre de mãos dadas com o trabalho Adriana Calcanhotto. Sendo assim, o terceiro disco de ouro da artista chegou com A Fábrica do Poema, o terceiro álbum da mesma. Poderia ser mais do mesmo, contudo, Adriana decidiu inovar. Podemos considerar que a compositora conseguiu cumpriu o seu propósito aproximando-se do abstracionismo.
Desta forma, o LP conta com algum experimentalismo, nomeadamente com poemas de Augusto de Campos (“O Verme e a Estrela”) e Gertrude Stein (“Portrait Of Gertrude”), textos do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (“Por Que Você Faz Cinema?”) e parcerias com Waly Salomão (“A Fábrica do Poema”), Arnaldo Antunes (“Estrelas”), António Cícero (“Bagatelas” e “Inverno”) e Jorge Salomão (“Sudoeste”).
Relativamente ao tema que intula o álbum, Waly Salomão, poeta responsável pela peça, revelou que o poema foi feito em memória de Lina Bo Boardi. Apesar de propositadamente “anti musical, anti facilidade, de forma a que as palavras não fossem palatáveis, digeríveis, musicáveis”, o artista releva que, “por incrível que pareça, Adriana musicou a letra de forma maravilhosa” (revista Cult, número 51, outubro de 2001).
Além de ser o último álbum a ter versão em vinil, com A Fábrica do Poema Adriana Calcanhotto conseguiu alcançar novamente a televisão nacional. Desta forma, a música “Metade” integrou a telenovela Quatro por Quatro (1994) e “Inverno” fez parte de Colégio Brasil (1996).
Seguiu-se Maritmo. O álbum corresponde ao primeiro elemento de uma trilogia, continuada com Maré (2008) e finalizada com Margem (2019). Gravado em 1998, Maritmo aproxima-se da dance music. “Parangolé Pamplona” corresponde ao primeiro passo de dança.
Em entrevista, Adriana Calcanhotto explicou que o parangolé é uma invenção do artista plástico brasileiro Hélio Oiticica, correspondendo a um conjunto de obras que surgiram da “necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão”. A temática corresponde a uma das suas áreas de estudo, tendo sido o foco de algumas master classes de Adriana na Universidade de Coimbra.
Desta forma, talvez seja necessário explicar a relação de Adriana Calcanhotto com Portugal. Genericamente, a artista é uma das professoras e uma das embaixadoras da Universidade de Coimbra. A sua aventura iniciou-se em 2015, onde a artista realizou um recital de poesia portuguesa e brasileira na Biblioteca Joanina, momento em que foi nomeada embaixadora.
Dois anos depois, a universidade passou a ser a sua residência artística e parte do trabalho. As master classes de Adriana Calcanhoto exploravam, principalmente, a poesia portuguesa e brasileira, trovadores provençais e galegos, a invenção da língua portuguesa e a canção popular do Brasil. A sua tour entre os principais palcos do Brasil e de Portugal, entre abril de 2018 a fevereiro de 2019, consistiu no seu “concerto-tese”.
Apesar da surpresa e fascínio pela escolha da artista, creio que temos de continuar. Chegamos assim a 2000, ano em que a artista lançou o seu quarto álbum, Público. Gravado no Rio de Janeiro entre novembro de 1999 e fevereiro de 2000, o álbum conquistou um disco de platina, isto é, conseguiu vender mais de 250 mil cópias no Brasil. Seguiu-se Perfil (2001), a coletânea dos êxitos da artistas, e Cantada (2002), da qual “Pelos Ares” fez parte de O Beijo do Vampiro (2002) e “Justo Agora” de Agora É Que São Elas (2003).
Como se não chegasse de espantos, Adriana Calcanhotto inicia uma nova aventura em 2004. Sobre o heterônimo infantil Adriana Partimpim, a artista lança um álbum para crianças. Poderia ser aleatório, no entanto, o título do álbum corresponde ao seu apelido de infância. Com novos olhos, apoderando-se da cor da esperança e do renascimento, pinta com tons de cor-de-rosa o imaginário dos mais novos.
Por estranho que possa parecer, “Fico Assim Sem Você” faz parte de Adriana Partimpim. Contudo, passa a fazer todo o sentido quando a artista o caracteriza como um “disco de classificação livre”. Apesar de não ter provas para tal, acredito que esta foi uma das músicas que mais sucesso teve em Portugal, pondo miúdos e graúdos a cantar o amor. Relembremos este clássico, “Eu não existo longe de você / E a solidão é o meu pior castigo / Eu conto as horas pra poder te ver / Mas o relógio tá de mal comigo”.
Com este trabalho Adriana Calcanhotto venceu o Latin Grammy Award para “Melhor Álbum Infantil Latino” (2006), o Prémio Tim (2005) na categoria Infantil e o prémio Faz Diferença do jornal O Globo para “Melhor Disco Infantil” (2004). Como já seria de esperar, conquistou mais um disco de ouro. No ano seguinte, Adriana Partimpim fez mais uma aparição com Adriana Partimpim – O Show.
Longe de se afastar do seu heterónimo, Adriana Calcanhotto presenteou-nos ainda com Partimpim Dois (2009) e Partimpim Tlês (2012). Ambos os álbuns contam com composições autorais e versões de alguns clássicos, nomeadamente, João Gilberto, Chico Buarque e Bob Dylan.
Como referido anteriormente, em 2008, a artista dá continuação à sua trilogia com Maré. Cumprindo a numerologia intrínseca ao álbum, três das músicas chegaram aos pequenos ecrãs: “Três”, em Ciranda de Pedra (2008); “Mulher Sem Razão”, em A Favorita (2008-2009); e “Um Dia Desses”, em Três Irmãs (2008-2009).
Também em 2008, Adriana lançou o primeiro livro em prosa, Saga Lusa – O relato de uma viagem. Na obra a artista conta, na primeira pessoa, o surto psicótico sofrido durante a promoção do álbum Maré em Portugal.
Contudo, esta não foi a única obra escrita pela artista. Em 2017, Adriana Calcanhotto produziu É agora como nunca – Antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira. Para além disso, a cantora participou no disco-livro O Poeta Aprendiz de Vinicius De Moraes.
Seguiu-se um álbum completamente dedicado ao samba. O Micróbio do Samba (2011), o nono álbum de Adriana Calcanhotto, conta com 12 composições autorais. Por entre as mais inovadoras percussões, a compositora explora, principalmente, o tema do amor, nas mais variadas facetas. Para além disso, paira pelos vários (e não únicos) caminhos do género ao qual se refere.
Após o segundo álbum ao vivo da cantora, Multishow ao Vivo: Micróbio Vivo (2012), chegou-nos os Olhos de Onda (2014), Loucura (2015) e Margem (2019). Apesar das referências marítimas, Olhos de Onda não fizeram parte da saga iniciada por Maritmo. De qualquer das formas, algumas das suas músicas integraram as telenovelas Geração Brasil (“Me Dê Motivo”) e Além do Tempo (“Devolva-me”).
O ano 2020 traz-nos um álbum produzido em e sobre algumas das vivências do contexto pandémico. Forçada a adaptar-se à nova normalidade, cresceu em Adriana Calcanhotto uma semente criativa, uma semente que se foi transformando numa obrigação moral. Adriana Calcanhotto dedicou assim o seu tempo à produção de um novo álbum, “como se tivesse a missão de fazer pão todos os dias. Mas não sei fazer pães, só sei fazer canções.”
Para além do álbum, Adriana lançou a versão audiovisual de “SÓ”. Através de uma sequência contínua, a artista e Murillo Alvesso permitiram que entrássemos na vida da compositora, na sua própria casa. Adriana Calcanhotto, um pijama branco, danças assíncronas, jogos de iluminação e muita reflexão.
Mas não fica por aqui, Adriana Calcanhotto traz mais entregas ainda em 2020. Na véspera do seu aniversário, a artista lançou uma releitura da música “Futuros Amantes”, o clássico de Chico Buarque. A música havia sido já gravada em 2016, em estúdio, por Adriana lado a lado de Eugénia Melo e Castro. O single antecipa o registo audiovisual do espetáculo “Margem, Finda a Viagem”, previsto para o último trimestre deste ano.
Correndo o risco de me alongar muito mais, findo aqui o perfil dedicado a Adriana Calcanhotto. Muito mais haveria a dizer sobre a artista, qui sait teremos ainda a oportunidade de retratar as suas múltiplas facetas. Para já, resta-nos desejar-lhe um feliz aniversário, com o desejo de assistirmos à sua presença durante os anos que estão para vir.