Nascido durante a quarentena, The S(ex) Tapes permite-nos entrar na vida de FLETCHER e da ex-namorada, a youtuber Shannon Beveridge. Apesar da intrusão subjacente, os objetivos da artista são claros: documentar os quatro anos de relacionamento, tentando ser o mais honesta possível. Desta forma, chega-nos um álbum cru, puro e duro, em constante disfarce por entre um instrumental que convida à dança.
Apesar de um documentário procurar explanar um acontecimento ou a vida de alguém, este poderá tornar-se formal ou demasiado seletivo, ou seja, demonstrando apenas as partes que se querem que sejam vistas. FLETCHER encontra o seu género dentro dos documentários, uma sex tape. Poderíamos associar esta escolha também a uma seletividade muito concreta, no entanto, vai muito além disso. A artista fez questão de explicar, “uma sex tape é quando realmente uma pessoa se encontra no seu estado mais vulnerável, na sua forma mais crua”.
Após desmistificarmos o contexto em que este álbum foi fabricado e as premissas envoltas na sua criação, creio que possamos embarcar na aventura. Desta forma, tudo começa com “Silence”. Coescrita com Emily Warren, Caroline Ailin e Malay, a composição explora aquele sussurro que nos diz que ainda temos muito que crescer. Como seria de esperar, a forma que FLETCHER encontrou para conseguir refletir e cultivar o próprio ser é o silêncio. “Silence / All I need is time and space and silence / Cut communication ‘cause I’m trying / To learn that I can lose you and survive it”.
Esse crescimento é visto como vantajoso em qualquer área da nossa vida. Num relacionamento, trata-se de alcançar a maturidade suficiente para se ser um bom parceiro, para se ter a capacidade de dosear as cedências e não cedências e perceber, além do que é bom para o nosso companheiro, o que é o melhor para nós. “Let go, I should be letting you go / I can’t postpone it, not anymore / When I know what I already know / What I need is”.
Apesar da intitulação escolhida, esta música tem pouco de silenciosa. A composição conta com Blue DeTiger, uma “badass bassist chick”, e uma quantidade assombrosa de sintetizadores. Contudo, a promessa é mantida. Além de um álbum de exploração de sentimentos, trata-se de um trabalho feito para meter as pessoas a dançar.
O videoclipe de “Silence” retoma a calma e a tristeza da lírica. As ondas do mar e os sussurros de uma discussão entre o casal dão mote à composição. Segue-se uma cadeira no meio do areal e FLETCHER que, após observar a paisagem, investe numa ida ao mar, como que a sua submersão parasse o turbilhão de sentimentos e a permitisse refletir. Esta justificação não consta em nenhum espaço, até porque o primeiro comentário da artista foi apenas “an emo pisces jersey girl in her natural habitat”.
“If I Hated You” corresponde ao segundo episódio de The S(ex) Tapes, contudo, à primeira música escrita por FLETCHER para o projeto. Fundada na teoria dos “ses”, explora o facilitismo que encontramos em nos ancorarmos na raiva e/ou na tristeza e na tentativa de encontrarmos uma desculpa ou alguém para culpabilizar quando as coisas se tornam difíceis. “It’d be easy if I hated you / I’d leave the after party / I wouldn’t miss your body”.
Apesar do refrão de “If I Hated You” apresentar uma composição interessante, a minha parte preferida corresponde ao segundo verso. “Took an eyelash off my face / Said, “Make a wish and I made three (All three, oh) / Wish I could’ve loved you better / Wish you’d kiss me; wish I wasn’t me, me”. Primeiro, percebemos que a nossa tradição é partilhada por outras línguas. Segundo, chegamos à conclusão de que FLETCHER não está bem a par das regras do jogo.
Desculpem a minha intervenção, parece que me deixei levar pelo sarcasmo característico da artista. Fora tais conclusões, conseguimos perceber a vontade de FLETCHER de chegar a um consenso. Apesar de se tratar de um processo íntimo, chegou ao ponto de recorrer uma entidade divina. O desespero traduz-se na dicotomia dos seus desejos, a vontade de ser outro alguém, um alguém que consiga dar o melhor de si ao outro.
Nesta segunda composição, FLETCHER junta-se a MoZella e, novamente, a Malay. Mais uma vez, a lírica destoa do instrumental, partindo daquilo que para nós é hoje considerado “normal”, é claro. No entanto, o videoclipe começa mais a aproximar-se da proposta apresentada. A artista chega a casa e prossegue com as obrigações morais de uma rotina noturna. O alcance do sono é atribulado, mas quando fecha a pestana a presença de Shannon Beveridge é mais do que evidente. Por entre o preto e branco, tons de verde saltam à tona, a realidade pura versus um pingo de esperança.
Segue-se “Bitter”. Produzida e escrita em conjunto com o produtor australiano Kito, a música não era para ser lançada. No entanto, os fãs são a força dos artistas e, graças à insistência, “Bitter” integra The S(ex) Tapes. Nada melhor do que a artista explicar o sentimento que originou a composição, “It’s like being on the outside of an inside joke/ It’s like when they only got Pepsi and you really want Coke / It’s like you finally get a text back and it’s just your mom/ It’s like when you just broke up and they play your song”.
Aparentemente, FLETCHER parece aproximar-se de “Fico Assim Sem Você” de Adriana Calcanhotto. Contudo, a lírica permite uma exploração mais afincada. Continuando, esse sentimento, em que parece que falta sempre algo, advém da pessoa que nós amamos ter já prosseguido com a vida (“I hate that I could tell that someone’s / Probably in my shoes by now”) e nós sermos incapazes de o fazer (“You’re still in my head, but / You’re not in my bed now”). Curiosamente ou não, a música estreou-se pela primeira vez na série The L Word: Generation Q, no episódio intitulado “Loose Ends“.
Numa fração de segundos, entramos numa realidade pouco esperada. Tendo por base que The S(ex) Tapes corresponde a um documentário de uma relação, não estaríamos à espera da chegada de uma exploração casual da sexualidade, “you’re not the one, but you could be the one right now”. Dá-se assim a substituição da cor da esperança pelo vermelho, a cor da paixão e carnalidade. Concluindo, “The One”, coescrita com Noonie Bao, passa a ser o hino do autodescobrimento e da desconstrução de preconceitos alusivos à exploração fluída de quem somos e com quem e em que contextos nos relacionamos.
“Shh…Don’t Say It” é a aftermath de “The One”. A composição retrata quando, após uma relação casual, o outro alguém quer tornar a relação séria e nós simplesmente não o queremos. “You dream of me dressed in white / I dream of you dressed up in nothin’ / I like you, you’re my type / Let’s make out, but I’ll make it clear, not lookin’ for something”. As justificações para tal repulsa podem ser várias, desde a falta de maturidade ao não esquecimento total de outrem, temas explorados anteriormente.
Da mesma forma, “Fell” é o seguimento normal de “Shh.. Don’t Say It”. Em entrevista à Apple Music, FLETCHER explicou que, “após as distrações anestésicas deixarem de funcionar, a realidade começa a instalar-se e aquela pessoa não está lá mais”. Apesar de se apresentar um episódio plausível na vida da artista, esta composição foi escrita por Jennifer Decilveo e Caitlyn Smith.
Por fim, chega-nos “Sex (With My Ex)”. Apesar de corresponder à última música do álbum, creio que poderá ter-se repetido ao longo do tempo. “Say goodbye forever, until next time”, não poderia ser mais autoexplicativo. De qualquer das formas, a honestidade das palavras de FLETCHER não deixa dúvida sobre o seu sentimento e, mais distante dos instrumentais radicais, esta música é capaz de levar qualquer um de nós a um pequeno lacrimejo.
Muito mais haveria a dizer sobre as múltiplas interpretações das líricas ou, até mesmo, das escolhas visuais dos videoclipes. No entanto, ouvir uma música é também procurar e, acima de tudo, encontrar o nosso significado num universo de milhões de possibilidades. Independentemente do significado que encontrem, uma coisa eu sei, perceberão a honestidade das palavras de FLETCHER.
Artista: FLETCHER
Álbum: The S(ex) Tapes
Editora: Capitol Records
Data de Lançamento: 9 de setembro de 2020