The Social Dilemma saiu em setembro na Netflix e sonha abrir os olhos aos utilizadores do mundo digital. A longa-metragem apresenta uma visão sobre as redes sociais, o capitalismo de vigilância, mecanismos quase com vida própria e a evolução tecnológica a uma rapidez supersónica. Jeff Orlowski é o nome por detrás da realização deste filme, um dos documentários mais badalados dos últimos tempos.
Quando se criou o botão do like no Facebook, a intenção era “espalhar amor e positividade”. Se, no início, as redes sociais pareciam “uma força fundamentalmente criada para o bem”, essa impressão pode ter mudado drasticamente, e carrega um toque de “ingenuidade” dos consumidores. Afinal não há mal aparente em ver mais um vídeo no Youtube ou a gostar de mais um post. Dos likes aos tags, o propósito das redes sociais não passa agora da manipulação comportamental das massas, através de um tempo de interação lucrativo para empresas multibilionárias que oferecem um serviço do qual somos produto e matéria-prima.
Parte número um: engagement. Mais ou menos traduzido, é o tempo que o utilizador passa colado ao ecrã. E a analogia mais apropriada consistiria numas correntes a sair do quadradinho luminoso para prender o indivíduo e para o manter em cativeiro numa bolha vazia e supérflua. Tudo isto através de posts feitos para monopolizar sorrateira e compulsivamente a atenção do usuário, que nunca têm realmente nada para nos oferecer, mas que ainda assim alimentam alguma coisa. Como se se tratasse do Cookie Monster, mas, em vez de bolachas, papamos conteúdos ocos.
Fomentada pela exploração das fragilidades e dos quês da psicologia humana, a “magia” do engagement vai desde o design, pensado ao pormenor com vista a tornar tudo mais apelativo, à emoção, devido à aproximação de comunidades, conhecer pessoas novas, etc. Pelo meio há algoritmos que nos entregam conteúdo similar e apostam naquela que for a maior probabilidade de corresponder aos nossos interesses, poupando de imediato a preocupação e o trabalho de uma pesquisa acentuada e voluntária.
O parâmetro número dois é o crescimento. As redes sociais são um negócio que se difunde a ele próprio e abalroa qualquer outra estratégia de publicidade pensada anteriormente. Tudo isto, claro, sem esquecer a terceira parte: os trocos (multibilionários) que se fazem a partir dos anúncios que interrompem o transe do scrolling e da navegação online. Há que fazer nascer dinheiro em todo o lado e, se à partida parece impossível, rapidamente se deve provar o contrário.
E quem nos dá esta aula são profissionais de companhias como Facebook, Google, Twitter, Instagram, Pinterest… enfim, aqueles que estão por trás de todos os ícones que fazem com que o ecrã ganhe vida, ou garras. Sejam designers, engenheiros ou programadores, as pessoas a que The Social Dilemma dá voz, mexem com tudo aquilo que conhecemos por “meramente digital”. Não tardam em demorar-se a falar da polarização, da propaganda, das eleições endrominadas, da desinformação, entre todas as outras ameaças da inteligência artificial, a um bom-senso do qual parecemos privados.
E se o meu vocabulário parece dramático, esperem até ver a narrativa que Orlowski preparou para os espectadores. Uma família suficientemente clichê é usada para ilustrar todas as problemáticas que os profissionais anteriores exploram – ou mencionam, considerando que acabam por se focar apenas nos algoritmos e no automatismo da previsibilidade das nossas escolhas.
Portanto, perdemos o fio à meada. De entre um pai e uma mãe preocupados e impotentes perante toda uma emancipação tecnológica, surgem três filhos. Uma filha que exacerba o espírito crítico e se distancia das redes, uma outra que, na pré-adolescência, começa a sentir o impacto de padrões de beleza completamente irreais e um filho, o do meio, em quem a narrativa se foca. Este rapaz é controlado por três sociopatas – um para cada máxima das plataformas digitais –, numa abordagem estrambólica, no mínimo.
Como se não bastasse a personificação destes instrumentos a contribuir para o tom de tragédia irrecuperável, temos também a banda-sonora do documentário. São violinos melodramáticos para aqui e são pianos trágicos para ali. Em suma, o filme é preenchido por um pano de fundo sónico que vem exaltar excertos noticiosos de tumultos sociais escolhidos a dedo, citações aterradoras, testemunhos intimidatórios e tudo aquilo que a tecnologia traz de mau.
Todos os distúrbios que abalam as mais variadas dimensões do meio em que nos inserimos, seja a nível social, cultural, económico ou político, são contextualizados por vários dos criadores destes fenómenos tecnológicos. Claro que o Mark não participa diretamente no documentário, mas não deixa de marcar lugar através da sua espantosa teoria da relatividade. Temas desde eleições manipuladas, usurpação de dados a outros escândalos são abordados. Existem muitos fatores e é tudo relativo.
Contudo, os restantes profissionais não hesitam em declarar os desvios evidentes, possibilitados por códigos bem organizados e que acomodam um capitalismo à escuta. Do Myanmar às Honduras, a presunção é vasta e percorre o mundo todo, com forças políticas a quererem tirar o máximo e pior proveito dos apetrechos das redes sociais. Os especialistas contam que estas plataformas deram origem a um tecido social que só se vai esfarrapando e degradando, levando de arrasto toda a conexão e autenticidade humana.
A necessidade de mudança é urgente, dizem eles. Ainda para mais com paradoxos que culminam num atentado contra as suas próprias criações. Por um lado, temos o criador das recomendações a apelar para que instalemos ferramentas que neutralizem essa funcionalidade. Por outro, temos um antigo executivo do Facebook e ex-presidente do Pinterest completamente espavorido: “não, não! Não há cá redes sociais para os meus filhos, de modo algum”.
O negócio alimenta-se a ele próprio (e regula-se também) através de uma espécie de sonda. São mecanismos programados para se aprimorarem sozinhos, quase conscientes e numa constante metamorfose sobre a qual o ser humano perdeu mão. Fiéis habitantes de armazéns massivos, cabos e computadores a perder de vista desenham a paisagem sobre a qual floresce a decadência humana.
A fotografia da encenação chega a ser bonitinha, há uma certa cinematografia neste teatro tendencioso. Nos testemunhos, a profundidade de campo e a claridade contrastam com as perspetivas sombrias sobre o descambar da moralidade humana. Há também recurso a animações. Ainda assim, The Social Dilemma não traz uma abordagem surpreendente nem extraordinária. É parco em conteúdo e informação, suscita curiosidades e problemáticas, mas não as investiga nem fundamenta.
O tema é pertinente, controverso e merece ser explorado. Só que, tal como o efémero movimento que Tristan Harris fez nascer na Google, de certeza que esta longa-metragem não passará de mais um lapso temporal marcado por um tópico momentaneamente viral e que depois desvanece, numa sociedade sempre em alvoroço e com um défice de atenção.
The Social Dilemma: o caos, a tragédia e o horror das redes sociais
Título Original: The Social Dilemma
Realização: Jeff Orlowski
Argumento: Davis Coombe, Vickie Curtis, Jeff Orlowski
Elenco: Tristan Harris, Jeff Seibert, Bailey Richardson
EUA
2020