A investigadora falou sobre o processo de escrita da sua tese e a sua vitória na 29.º edição do Prémio Victor de Sá.
A investigadora do Centro de Estudos de História Religiosa Cátia Tuna foi distinguida pelo Conselho Cultural da Universidade do Minho, com o maior galardão do país para jovens investigadores, o Prémio Victor de Sá de História Contemporânea 2020. Foi a tese “Não sei se canto não sei se rezo: ambivalências culturais e religiosas do fado (1926-1945)” que a distinguiu das demais, o mesmo trabalho que dias antes recebeu também o prémio Fundação Mário Soares.
ComUM – O que a levou ao tema das ambivalências culturais e religiosas do fado para a escrita da sua tese de doutoramento?
Cátia Tuna – Este tema das ambivalências culturais e religiosas do fado foi possível graças ao meu orientador, professor António Matos Ferreira. Foi ele que teve a ideia de fazer uma tese sobre o fado, explorando a sua componente religiosa. Se não fosse ele eu teria feito uma tese sobre outras coisas, menos arriscadas e sofisticadas. Este tema também surgiu quando estava na faculdade e ia cantar fado às tascas de Lisboa, sendo conhecida como aquela que ia ao fado cantar.
ComUM – A sua tese retrata, fundamentalmente, o fado no período de 1926 a 1945, como este era visto e vivido. O que mudou para os dias de hoje?
Cátia Tuna – Muita coisa mudou mas também muitas coisas continuaram iguais. O fado entrou numa catapulta gerada por uma série de fatores que, fez com que nunca voltasse atrás, ganhando uma escala nacional que nunca mais vai perder.
O fado antes era uma prática que não era renumerada, e se era, era de uma forma mais informal. Antes de 1926 era uma prática boémia e muitas vezes clandestina e a partir de 1927, com a criação de um decreto-lei, passa a uma música paga e muita coisa muda. Passa a uma lógica de mercado e passa também a ser um produto comercial. Além do decreto, o fado começou a ser profissional graças à rádio e ao disco que, numa época sem televisão, estavam a ganhar uma dimensão e eficácia incrível.
No teatro, o fado já era cantado na primeira fase do século XX, as companhias de teatro faziam as suas digressões, havendo sempre uma relação de grande simbiose com o fado sendo o teatro a sua primeira grande catapulta antes de 1926. O cinema também foi muito importante, com o primeiro fonofilme português sobre a Severa, a fundadora do fado, este começou a ganhar mais relevância cultural.
Além disto, havia a dimensão ideológica, o fado operário, não trabalhado por mim mas trabalhado pelo professor Rui Vieira Neri, um fado ligado aos meios operários, anarco-sindicalista de forma particular. Por causa das suas dinâmicas de propagação iam pelo país a propagar as ideias de vanguarda politica e os fadistas iam cantar fados com componente ideológica que hoje podemos chamar de esquerda, que se dedicam a ideais libertários com radicais. Esta dimensão política, o fado hoje em dia já não o tem pois começou a perde-la com o crescimento da censura.
Uma diferença também do fado antigamente para o atual é a poesia. Antigamente na poesia popular, os poetas eram figuras muito importantes que escreviam com um primor que hoje em dia se perdeu. Eram deliberadamente ligados à componente popular, com um cuidadoso trabalho com a métrica e a rima e tinham temáticas muito diferentes, com uma preocupação social de falar sobre o sofrimento dos outros, preocupação que advinha dessa relação com as ideologias de vanguarda.
No entanto, fado hoje ainda mostra algumas características que nasceram nestes anos, as casas de fado por exemplo. A auto-regulação, o grande cuidado e a autocritica, com permanentemente pessoas a dizer como se deveria cantar e como não se deveria cantar ou como é que se deveria vestir e como não se deveria vestir. Este tipo de práticas ainda existem num certo associativismo fadista nos bairros mas no grande fado já não existe.
ComUM – Como foi o processo de escrita desta obra? Que dificuldades lhe surgiram no caminho?
Cátia Tuna – Tive muitas dificuldades, especialmente porque a minha área é a Teologia e não a História, portanto, a minha primeira dificuldade foi perceber a própria metodologia da História, ao que ela implica e a um saber próprio que eu não estava acostumada. As primeiras fontes do fado com as quais contactei eram muito difíceis de agarrar, não sabia por onde devia pegar. Isso foi uma primeira fase, onde tive de ler muitas coisas com a humildade de perceber que não estava a perceber nada ou pouca coisa e muito menos a perceber que caminho é que eu teria. Até que houve uma altura em que montei uma espécie de máquina para fazer a tese. Uma espécie de método que, independentemente de ter a certeza se daria resultado ou não, iria utilizar, porque era a única forma que tinha de pegar nas fontes de forma sistemática, sem perder informação.
Optei por não ser seletiva, optei por, de forma sistemática, organizar todos os dados biográficos, os dados sobre poesia, sobre os espaços onde o fado era cantado, sobre as digressões, sobre tudo de forma sempre muito organizada e coloquei as minhas fontes nisso que chamo de máquina. Eu lia-as, numa leitura não muito interessante, mas muito trabalhosa porque eu estava logo a dividir quase como se fossem vários segmentos dessa tal máquina.
Uma grande dificuldade foi a de analisar as fotografias de fadistas em atuação. Era como se tivesse uma porta que me impedia, pois eu não tinha categorias interpretativas suficientes para me deixar ver mais além. Por isso que ter ido para França, e ter passado meses em bibliotecas lá, foi muito importante pois tive acesso a obras importantíssimas que em Portugal não conseguiria encontrar com tanta facilidade.
Mas também tive facilidades, os jornais de fado, algo que hoje já não existe também, foram a grande base do meu trabalho, analisei cerca de 650 números de jornais de fado que me deram informações preciosas por causa da sua regularidade e vitalidade que estabeleciam um elo de ligação entre a comunidade fadista. Assim como, o facto de ter tido contacto com o fado e ter tido pessoas perto de mim, tanto os meus orientadores como os meus colegas do centro de estudos de História Religiosa, fez com que a escrita desta tese não fosse um trabalho tão solitário, o que facilitou imenso o meu trabalho.
ComUM – Qual foi a sua reacção ao receber a notícia da vitória? O que sentiu?
Cátia Tuna – Não estava nada à espera pois, tendo a minha tese a ver com duas áreas que são tudo menos centrais na história contemporânea, a minha esperança era reduzida, ainda por cima, há duas semanas atrás tinha recebido a notícia que tinha ganho o Prémio Mário Soares e pensei: ‘Bem, alguém se enganou e que ninguém vai cair no mesmo erro duas vezes’. Pensava que realmente não iria ganhar dois prémios desta qualidade. Mas foi com uma grande alegria claro, que recebi este prémio.
ComUM – O que mudou e o que pretende fazer agora, depois da atribuição deste mérito à sua obra?
Cátia Tuna – Não planeio continuar a estudar o fado, pois acho que há quem o faça com motivações e capacidades melhores que a minha, acho que o meu trabalho até agora fez sentido para dar subsídios para investigações futuras mas que não serei eu a fazer. No entanto, gostaria muito de estudar Amália e a religiosidade de outros fadistas que aprecio, mas seria com uma equipa e não sozinha.
Quero muito publicar a tese, quando o trabalho sossegar, a partir de janeiro, o meu esforço será publicar esta tese, contactar com editoras para pôr isto cá para fora para poder fechar este ciclo da minha vida.