Recentemente, o mundo acompanhou umas eleições nos Estados Unidos da América particularmente conturbadas. Muito se escreveu e falou sobre a polarização, o nível anormal de conflitualidade, a fratura social. Mas não é tanto aqui que está a novidade. Afinal, o conflito de ideias e ideologias é indissociável do conceito de democracia: a novidade hoje em dia é a incomunicabilidade entre os lados conflituantes, é o não reconhecer o outro como legítimo, é a visão do adversário político como inimigo e é a lenta corrosão do regime democrático que daí decorre.

Falar de qualidade da democracia e de política nos dias que correm é muitas vezes um exercício incompreendido. O próprio termo está muitas vezes conotado negativamente. Mas é importante que nos lembremos que a política não é algo distante e inacessível. Política diz respeito a tudo na nossa vida em sociedade, desde as escolhas que fazemos às opiniões que expressamos, às causas que defendemos, aos direitos pelos quais lutamos. Por isso, não faz grande sentido dizermos que “não queremos saber de política para nada”. Ela afeta-nos quer queiramos quer não. Política é o que somos, é o nosso papel na sociedade.

Será certamente consensual afirmar que a democracia é, com mais ou menos falhas, a melhor e moralmente mais correta forma de vivermos e de nos organizarmos em sociedade. É ela que possibilita a participação de todos, nas decisões que a todos afetam. É ela que consagra a liberdade e a igualdade como valores fundamentais. Daí decorre a nossa obrigação de a conservar e defender, desde logo percebendo os danos irreparáveis que podem decorrer da exploração política de divisões, do medo, de ressentimentos e ódios e da inexistência de um chão comum no debate político, nem que ele seja apenas o reconhecimento da legitimidade do outro.

O caminho não pode pois ser marginalizar e excluir do processo político aqueles quese sentem já marginalizados e excluídos e que, por isso, respondem ao chamamento daqueles que, apresentando soluções simplistas para problemas complexos, ou mesmo discursos e propostas lesivas da convivência social, da inclusão e do respeito pelo outro, prometem refundar e purificar a democracia, retirando-a das garras das elites corrompidas e devolvendo-a ao povo. É precisoir ao encontro, compreender, dar soluções.

Mas a defesa da democracia não se faz com menos democracia. Não se faz com recuos ou cedências, que esta estrada só tem um sentido. Faz-se com afirmação: com a afirmação do modelo de sociedade que se baseia na discussão de pontos de vista, mas não abre mão do respeito pelo outro e, sobretudo, com a afirmação de que não há democracia onde não existe o respeito pelos direitos humanos.

Como a maioria dos ocidentais, somos herdeiros da democracia. Mas o que é para nós herança, custou muito e a muita gente conquistar. Custou vidas. Portugal é um bom exemplo histórico disso mesmo. Numa altura em que se assiste a episódios de degradação do paradigma democrático pelo mundo fora, cabe-nos afirmar sem tibiezas que não abdicamos dele e que não desertamos do combate daqueles que nos antecederam.

Acredito que esta geração não se furtará a esse combate, que nos deve unir independentemente das nossas convicções ideológicas. É esse o papel que devemos assumir. Sempre.