Dilúvio sem Deus, a mais recente publicação de Joana Amaral Dias, fala-nos sobre as Grandes Cheias do Tejo de 1967. “A tragédia escondida pela ditadura e esquecida pela democracia”, tal como a autora descreve. A obra, lançada em setembro, cumpre a importante função histórica, política e social de relembrar aqueles que o regime esqueceu.
Dilúvio sem Deus retrata a tragédia esquecida pelo Estado Novo, mas eternizada na memória das vítimas que sobreviveram para contar o drama. “Foi um episódio meteorológico extremo: abriram-se as cataratas do céu. Em algumas horas, caiu a chuva equivalente à de um mês inteiro. O nível da água do Tejo subiu quatro metros”, descreve Joana Amaral Dias.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira são relatados os acontecimentos dramáticos vividos pela população na noite das cheias. Na segunda parte é analisada a ação do Estado Novo perante a tragédia vivida. O livro é rico em metáforas e possuiu ótimas descrições que tornam a experiência de leitura mais interessante. Outro ponto abonatório são as imagens da tragédia. Apesar de algumas serem bastante gráficas, permite que o leitor entenda a verdadeira crueldade daquela noite. O que poderia facilmente tornar-se num livro excessivamente informativo, acaba a proporcionar uma arrepiante leitura.
Esta obra está preenchida de pertinência do início ao fim. Em primeiro lugar, salienta a importância de meios de comunicação imparciais e ativos, no auxílio à população perante uma catástrofe. Diversos meios de comunicação tentaram fugir à censura do Estado Novo e obterem a tão desejada transparência. Só através da verdade seria possível fazer jus aos mortos e contabilizar de forma eficaz as perdas materiais daquela noite. Só com a verdade se poderia denunciar a crise sanitária vivida por parte da população Lisboeta.
Por conseguinte, a conduta de António de Oliveira de Salazar foi altamente escrutinada pela autora. O déspota possuía uma obsessão em esconder e criminalizar a pobreza. A sua conduta não se alterou perante as cheias, pelo que impediu o país de estar plenamente informado sobre a tragédia. De igual modo, impediu o regime de prestar o verdadeiro auxílio às vítimas e conferir-lhes algum amparo em tempos difíceis. “Entre os meninos de sua mãe caídos nas ex-colónias e esquecidos nesses solos como se fossem lixo ou os mortos sem nome e sem enterro das Grandes Cheias, sem sequer número, a maior e mais pesada censura de Salazar foi à existência, à vida”, escreve a autora.
Não menos importante, o livro é uma interessante ferramenta para compreender como se processa um episódio de trauma coletivo. A autora dá algum contexto do que é a síndrome do sobrevivente e de como se processa um episódio de luto. Em tempos de pandemia, o livro aparece-nos como importante mecanismo de reflexão acerca do impacto psicológico que uma tragédia pode ter. O sofrimento psicológico não é desvalorizado em prol dos danos físicos e materiais.
Joana Amaral Dias retrata ainda as diferenças socioeconómicas que também vitimaram grande parte da população durante as Grandes Cheias. Apesar das cheias terem sido mais intensas no Estoril, foi em bairros mais pobres de Loures, Algés e Alenquer que os estragos se fizeram sentir. Foi também nesses bairros pobres onde a morte levou mais vidas. Enquanto no Estoril as camadas mais ricas ficavam na sua poltrona a ouvir a chuva, nos bairros mais pobres a população morria afogada dentro das suas barracas. Talvez esta seja uma das grandes premissas deste livro. Há 53 anos, a pobreza determinou, em grande parte, quem morria ou sobrevivia perante tal dilúvio. Meio século se passou e algumas coisas ainda não mudaram.
Título Original: Dilúvio sem Deus
Autor: Joana Amaral Dias
Editora: Oficina do Livro
Género: Histórico
Data de Lançamento: setembro de 2020