Um grupo de cientistas de Portugal e Finlândia desenvolveu um estudo que conclui que a União Europeia, com o seu financiamento, beneficia desde 1992 os projetos com animais “carismáticos” e secundariza os restantes. Do grupo de pesquisadores faz parte Ronaldo Sousa, investigador no Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA). Em entrevista ao ComUM, discute esta problemática e perspetivas para o futuro com a nova Estratégia da UE para a Biodiversidade 2030.
ComUM – Participou no estudo que concluiu que a UE privilegia com o seu financiamento as aves e os mamíferos, que contou com vários cientistas de Portugal e da Finlândia. Ao todos, quantos elementos fizeram parte da equipa?
Ronaldo Sousa (RS) – Éramos quatro portugueses, sete elementos ao todo.
ComUM – Como foi o processo de avaliação e estudo para se chegar a esta conclusão?
RS – No geral, são dados que já existem da União Europeia, de projetos de conservação aplicados que visam, essencialmente, recuperar espécies. Foi um processo que começou em 1992 e o que fizemos foi rever todos os projetos só com animais que foram financiados pela União Europeia e ver como era distribuído o dinheiro por espécie. O que vimos foi que a maior parte do financiamento foi com mamíferos e aves, se bem que, como é lógico, nós temos outros grupos de animais, só que recebem muito menos dinheiro.
ComUM – O apoio às espécies vertebradas é seis vezes maior do que o apoio às espécies invertebradas, por causa da sua popularidade. Que outras razões podem existir para explicar esta desigualdade?
RS – Sim. Uma das outras razões que pode acontecer é que algumas destas espécies têm distribuições espaciais muito grandes, como é o caso do urso ou o lobo, por exemplo, na Europa. Por isso, quando os países concorrem a estes fundos, as espécies com maior distribuição têm mais probabilidade de serem financiadas e receberem mais dinheiro. E assim, para espécies que têm distribuição muito reduzida, só num país específico, será mais difícil ter financiamento. No entanto, ao testarmos vários padrões, o que vimos de significativo, foi o carisma da espécie, medido pela sua popularidade de pesquisas na Internet. Os animais mais carismáticos com mais popularidade são os que recebem mais dinheiro.
Por sua vez, testamos o tamanho dos indivíduos das espécies, se tamanhos maiores poderiam receber mais financiamentos, mas não se revelou significativo. Para além disso, o mais interessante de tudo, também vimos o estatuto de conservação das espécies e, mais uma vez verificamos, não é pela espécie ser mais ameaçada que está a receber mais dinheiro. Foi interessante ver que não há qualquer relação entre o grau de raridade da própria espécie, de ameaça de conservação e o dinheiro que recebe. Logicamente, isto é um problema, pois podemos ter espécies que estão muito ameaçadas hoje em dia e não recebem qualquer financiamento ou ajuda para a sua conservação na União Europeia.
ComUM – Considera que existe desinformação sobre a importância da preservação de todas as espécies animais para uma biodiversidade saudável?
RS – Sim. É um bocadinho o que fala o estudo, nós tendemos a desvalorizar, por exemplo, muitas espécies de invertebrados. Quando olhamos para os insetos, a maioria olha para essas espécies e não vê qualquer valor em termos de conservação. Se bem que as coisas já foram piores no passado porque hoje em dia até os olhamos como importantes na polinização e como isso pode ser importante para nós humanos, mas é uma coisa ainda muito rara. Só agora começou a estar em voga, mas mesmo assim ainda são muito pouco conhecidas estas situações. Por isso, a maior parte dos invertebrados passam ao lado e não recebem qualquer apoio e é fácil perceber isso. Nunca ninguém vai estar interessado em gastar muito dinheiro na conservação de uma formiga que existe no local x ou y. Nós humanos temos uma ligação muito maior a animais vertebrados e dentro destes ainda há maior ligação aos mamíferos e às aves.
ComUM – A nova Estratégia da UE para a Biodiversidade 2030 pode resolver este problema? De que forma?
RS – A estratégia foi lançada em maio e passou um pouco despercebida por causa da pandemia, mas a União Europeia pretende gastar muito dinheiro nos próximos dez anos e esse investimento passa pela conservação e mitigação das alterações climáticas. Fala também em gastar vinte biliões anualmente neste tipo de coisas, o que é muito dinheiro, mesmo sendo de vários países. É um investimento gigantesco, nós temos ouvido falar do Green Deal e é um pouco isso. Pretende alavancar a economia toda, mesmo por causa da pandemia, investindo na biodiversidade.
Aquilo a que chamamos atenção é que se vai gastar muito dinheiro, mas é preciso não cometer os mesmos erros do passado que era muito poucas espécies a receberem este apoio. O que este artigo vem chamar à atenção é para a distribuição ser mais equitativa, porque há outras espécies muito mais ameaçadas e que têm de ter alguma atenção. O que pretendemos é que este investimento seja mais igualizado pelas espécies tendo em conta, por exemplo, o tipo de habitats que temos. Isto porque outra coisas que acontece, embora não tenha sido estudada neste artigo, é que normalmente temos a tendência em apostar e gastar mais dinheiro em habitats terrestes e esquecer-se dos aquáticos. Assim, por vezes, existem estes enviesamentos, não só por causa das espécies, mas também por causa dos habitats. Muitas das coisas que se passam na água não vemos, então passa-nos despercebido.
Outra coisa importante e que a União Europeia pretende investir é, em habitats degradados, restaurá-los, como eles eram num passado não muito longínquo. Por isto, além do foco na conservação das espécies, a UE está muito interessada na restauração de habitats, porque alguns deles estão com problemas. Uma coisa muito simples é, por exemplo, rios que têm barreiras físicas, destruí-las e tentar aumentar a conectividade dos rios. Logicamente, isto é caríssimo, mas a UE, nestes próximos anos, pretende investir muito dinheiro nisto. Agora vamos ver se isto são só palavras ou se serão ações. Mas penso que sim, agora a UE está muito interessada nestas questões.