Dois meses após o lançamento da série, The Queen’s Gambit continua a ser discutida e descrita como uma das melhores estreias do ano. Apesar de pouco publicitada, o furor em redor de Beth Harmon foi imediato. Nos primeiros 28 dias após o lançamento, a série foi vista por 62 milhões de famílias e subiu ao top 10 da Netflix em 92 países. Assim, The Queen’s Gambit veio salientar como um bom enredo e personagens cuidadosamente construídas são o suficiente para prender o espectador ao ecrã de tal forma que nem depois de terminar a série consegue deixar de pensar nela.
The Queen’s Gambit segue a história de Beth Harmon. Aos nove anos perdeu a mãe, vítima de uma acidente de carro. Após ser acolhida num orfanato para raparigas, criou uma amizade improvável com Mr. Shaibel (Bill Camp), um dos trabalhadores do orfanato que, no seu tempo livre, jogava xadrez na cave do edifício.
O brilhantismo do programa não reside na exibição de intricados e silenciosos jogos de xadrez, nos quais o único som é o eventual tac do botão do cronómetro clicado pelos jogadores. Aliás, é muito improvável que os mais de 62 milhões de lares que viram The Queen’s Gambit compreendam ou revelem interesse por xadrez; a maioria dos espectadores não entenderá as escolhas feitas ou porque foram feitas. O que podemos compreender e sentir genuinamente é a tensão das cenas. Sei que um movimento comprometedor foi feito quando Beth se contrai, ou que a jogadora tem a vantagem quando, quase provocadoramente, cruza as mãos e nelas pousa o queixo, observando atentamente o oponente. Posso não associar certos nomes como “en prise” ou “blitzkrieg” aos movimentos feitos no tabuleiro, mas consigo compreender a raiva frustração, solidão e alegria de Beth, ainda que venham de lugares distintos das minhas próprias emoções.
Torna-se, assim, muito fácil ficarmos fascinados pela vida do prodígio. Os vícios e obsessões que carrega desde criança tornam as suas ações imprevisíveis, deixando no espectador uma curiosidade quase incontrolável por onde o arco da personagem a irá levar.
Os altos e baixos do estado emocional de Beth são expostos cruamente, e nunca arrastados para debaixo do tapete quando já não são convenientes ou agradáveis de ver. O alcoolismo e o vício pelos comprimidos não são uma falsa e barata pretensão para forçar imperfeições a uma personagem de uma inteligência singular. Beth torna-se imprevisível, afasta as pessoas que tentam ajudá-la de alguma forma, levanta-se, volta a cair (às vezes literalmente) e repete o ciclo até que, por fim, encontra algum semblante de estabilidade.
O sucesso da série deve-se, em última instância, ao guião eximiamente elaborado por Scott Frank, previamente nomeado para o Óscar de melhor roteiro adaptado pelo filme Logan (2017). À escrita alia-se a magistral atuação do elenco, com particular destaque para Anya Taylor-Joy. A jovem atriz tem vindo a construir uma carreira sólida no mundo do cinema, e com certeza a série será o necessário estímulo para solidificar o seu nome no púlpito das melhores atrizes da sua geração.
Anya retratou Beth Harmon como uma figura independente e resiliente no cerne do mundo de um jogo dominado por homens sem, no entanto, perder (ou sentir que deveria perder) a sua feminilidade. Esta reflete-se naturalmente, por exemplo, na precisa mas elegante forma como escolhe mover as peças. Parte do brilhantismo da representação de Joy reserva-se às recaídas de Beth, na raiva e cinismo com que encara um mundo que dificilmente compreenderá a sua mente, ao aborrecimento pela vida comum e a perda descomedida de controlo nos episódios alcoólicos.
Scott Frank mencionou numa entrevista que quando, juntamente com o cinematógrafo da série, estava à procura de locais para gravar, parou no saguão de um hotel, onde estava pousado um tabuleiro de xadrez. Ao tirar a fotografia, uma rapariga com um vestido amarelo apareceu, tornando-se num vulto de cor na imagem. A beleza do retrato levou Scott a decidir, instintivamente, que aquela paleta, simples e constrita a alguns tons, seria a utilizada na série. Assim, a cinematografia e os cenários sem dúvida acompanham de perto o crescimento da fisicalidade de Beth, ainda que os tons se mantenham algo escuros, com uma luxúria inerente e pressagiadora do que será o futuro da rapariga. Os cenários tornam-se gradualmente mais ricos, as roupas mais sofisticadas, a intensidade da música num crescendo constante.
Em suma, com uma premissa que poderia facilmente afastar a atenção da maioria dos espectadores, The Queen’s Gambit arrebatou com todas as espectativas. Scott Frank provou, mais uma vez, como uma narrativa se apoia, antes de mais, em personagens coerentes e honestas. Todos os elementos, passando pela cinematografia, música e guarda-roupa, culminam naquilo que será uma das melhores séries do ano e um dos grandes destaques da Netflix.
Título original: The Queen’s Gambit
Realização: Scott Frank
Argumento: Scott Frank
Elenco: Anya Taylor-Joy, Thomas Brodie-Sangster, Harry Melling
2020
EUA